sexta-feira, 30 de maio de 2008

Eu quero, eu acredito


Sem autor, como sem autor é a foto que me chegou com o sugestivo título de "Um minuto antes da surra..."
Um dia eu vou nascer outra vez
Sei que vou.
Um dia, vou ser criança, mesmo criança,
Sei que vou.
Um dia, vou ter uma boneca,
não me vou levantar de madrugada,
para ir comprar e trazer às costas
aqueles cem pães de cada dia.
Sim, eu sei que vou.
Um dia, vou ser adolescente,
Sei que vou.
Vou ter uma saia de pregas igual às outras,
Sei que um dia vou usar saiotes, quando eles se usarem,
Sei que vou.
E vou ter um casaco de malha branco, mesmo branco,
Sei que vou.
Vou poder ir à matinée,
Vou ter tempo para estudar a lição
Sentada a uma mesa,
E não encostada a uma porta com uma pedra na mão.
Mas, antes de mais nada,
Eu quero ser mesmo uma criança,
Quero ter uma boneca,
Quero não ter medo à noite,
Nem ter de caminhar pelo musseque na manhã escura
Descalça para poupar os meus sapatos de pano castanhos,
De que depois preciso para o único momento
Em que finalmente quase posso ser criança:
Estar na Escola.
Sabem, a Escola, para muitos de nós,
Ainda é o único lugar,
Em que, às vezes, podemos ser crianças.
Um dia, vou ser uma criança para saber como é.
Eu sei que vou.

Quando não há pão, come-se boroa...

O mar visto da minha mesa de trabalho...


Este ditado, como muitos outros, está ultrapassado, porque hoje a boroa é mais cara do que o pão. Não vou agora esmiuçar as razões, fica para outra altura, mas vou, ainda assim, explicar o título.
Estou para aqui sentada, numa sala virada para o mar, que nem a 30 metros está, vejo os grandes navios de carga pacientemente à espera de poderem entrar e descarregar e mudei de trabalho. Isto é, como não posso ter pão, isto é, fazer um trabalho mais próximo, digamos, de quem mais precisa informação e conhecimento, estou a preparar uma espécie de Seminário para médicos, enfermeiros e técnicos hospitalares sobre a Humanização dos cuidados. Neste caso, será a boroa…
É claro que enquanto preparei o trabalho para apresentar e treinar auxiliares de saúde, tinha, forçosamente, de pesquisar informação aprofundada que me escorasse o trabalho. Ainda bem que o fiz, pois agora estou na posse de material suficiente para esse Seminário de quatro dias, de que fará parte integrante o visionamento do filme “Patch Adams”. Já tinha o trabalho bem adiantado, porque sei que há gente grande suficientemente humilde para ouvir e reflectir sobre aspectos do dia a dia que, por terem entrado na rotina, começam a perder significado. E assim aconteceu. É por estas e outras que sou uma advogada tão entusiasta do namoro após o casamento, de umas flores para alimentar a alma… Porque a rotina, a monotonia, tudo consomem sem chama nem alegria.
Para os auxiliares, subordinei tudo o que apresentei a esta questão: “E se fosse eu?”. A partir daí, de os obrigar a calçar os sapatos do doente, tudo se torna mais fácil. Fácil demonstrar que o sorriso, o tratar pelo nome, a paciência, a aceitação, o acolhimento, o respeito, tudo ajuda o doente, porque é muito diferente ser o “n.º 23 Enfermaria Homens” ou o Sr. Faustino Kalamba. Que uma mão sobre outra mão baixa a febre e diminui a dor. Porque a dor se pode curar com analgésicos mas o sofrimento precisa de ser reconhecido como único da Pessoa.
Daí achar por bem terminar com estas duas citações:
Não há riqueza maior que a saúde do corpo, nem contentamento maior que a alegria do coração. É melhor a morte do que uma vida amarga e o descanso eterno, mais que uma doença prolongada.
(Eclesiastes 30, 16-17)

Os corpos não sofrem; as pessoas sofrem. (Eric Casad)


Pois a posição não é muito confortável para escrever, mas se não pudesse escrever ainda seria pior. Além disso, a paisagem é linda e calmante. Portanto, Deo gratias.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Tudo o que Deus faz é pelo melhor...

Amigos, vou contar-vos uma história que li há muitos anos, num manual que utilizei quando ensinei uma disciplina que se chamava "Língua e História Pátria": Era uma vez um rei que tinha um conselheiro que muito prezava pela sensatez dos seus conselhos. Este apreço caía mal nos invejosos e o nosso conselheiro tinha os seus inimigos do peito. Ora era pendor seu, sempre que tinha que aconselhar o rei sobre as medidas a tomar sobre qualquer coisa difícil, terminar com a expressão "Tudo o que Deus faz é pelo melhor".
Bem, um dia o princípe, filho único, num torneio caíu do cavalo e morreu e quando todos foram apresentar os pêsames, o nosso conselheiro lá foi, disse o que o coração lhe transmitia, mas acabou com a frase sacramental:"Tudo o que Deus faz é pelo melhor e V. Majestade tem de conformar-se, porque pode ser que esta infeliz morte tenha livrado o príncipe e o reino de alguma calamidade maior".
O rei ficou sentido e os invejosos logo aproveitaram para o atiçar e dizer que um conselheiro tão insensível merecia a morte. Tanto disseram e falaram que o rei, num ímpeto, mandou um carrasco a casa do conselheiro com ordens para lhe dar um golpe fatal assim que ele aparecesse. Ora o dia estava quente e o conselheiro estava no seu quarto, muito à vontade, mas quando ouviu, à porta, dizer que vinham da parte de el-rei, enfiou um roupão à pressa e veio a correr pelas escadas. Tropeçou no roupão, caiu, partiu uma perna e o carrasco não teve coragem de dar o golpe num homem caído no chão. Voltou ao palácio, disse ao rei o que se tinha passado, o rei pensou e disse que ficava tudo por ali. Já agora, ainda queria ver o que o conselheiro lhe diria quando ficasse bom...
Daí a um mês, agarrado a duas bengalas, o conselheiro foi ao paço real e o rei perguntou-lhe se ele ainda achava que tudo o que Deus faz é pelo melhor. Resposta do conselheiro:" Certamente, Majestade! Quem sabe sabe o que me aconteceria se não tivesse partido a perna!" Aí o rei caíu em si e pensou que, de facto, se ele não tivesse partido a perna, estaria morto.
Bem, no dia 26 de Maio, levantei-me cedo e fui meditar à beira mar. Levava vestido um bubu, que é um trajo comprido, até aos pés, e andava ali à babugem onde o mar encontra a praia. Estava a olhar para dentro e de repente vi que uma onda grande se vinha formando e que me iria molhar toda. Dei meia volta para fugir, virei o corpo todo, mas o meu pé direito ficou onde estava. Tinha fracturado os ossos que ligam o peróneo ao pé, além dos ossos do tornozelo. Fui operada na terça-feira, tenho 6 parafusos e uma placa de 15 centímetros, tive alta hoje e estou agora a chegar a casa e a pôr-me em dia convosco.
Posso trabalhar sentada numa cadeira, com o pé lesionado em cima de outra e na segunda-feira retomo as minhas actividades em pleno. Até lá tenho que treinar com duas canadianas, mas vai correr tudo bem. Hei-de publicar aqui uma foto com o meu glorioso pé direito armado em importante e sei que tudo o que Deus faz é pelo melhor.

domingo, 25 de maio de 2008

Cara de Avó

Aqui estou, em toda a minha glória, cabelo ao vento, com cara de Avó Pirueta. Para ver se este meio sorriso chama ao palco O Escondido Sorriso Imenso. Tirada no dia 15 de Maio, ao pôr do sol, com o mar ao fundo.
No meu lado esquerdo, só parte cabe na foto, o meu coração, a minha Caixinha de Afectos. Onde há sempre lugar para mais um que queira entrar.

S. Francisco de Assis

Embora saiba que este poste vai aparecer com data de 24 de Maio, como o anterior, aliás, estou, de facto, a escrever a 25, só que não sei nem tenho por aqui ninguém que saiba, actualizar a data e a hora. Estamos, portanto, num Domingo. Por outro lado, ainda que já conheça, com os olhos da alma, todos os que enchem, (mas deixando sempre espaço para quem quiser vir), a minha Caixinha de Afectos, queria deixar aqui um leve intróito explicativo: eu não sou nenhuma fundamentalista religiosa, nem freirática e muito menos beata!
Tenho falado últimamente muito em orações, Deus, Amor, e outros temas correlaccionados, apenas porque se entroncam em tudo o que estou a fazer. Não imaginam o que tenho aprendido, a estudar para poder partilhar (outra definição para ensinar)! E, ultimamente, no tempo certo, aprendi muito sobre a diferença entre "sofrimento" e "dor". Depois, a gente lê o nosso Raul e ele acorda-nos tão suavemente para outras realidades que estão mesmo à nossa frente e muitas vezes não identificamos...
Por isso apeteceu-me, a mim que nasci no dia de S. Francisco de Assis, "O Louco de Deus", publicar a sua Oração. Um Poema de Renúncia, chamo-lhe eu.
Senhor,
Fazei de mim um instrumento da Vossa Paz;
onde houver ódio, que eu leve o Amor;
onde houver ofensa, que eu leve o Perdão;
onde houver discórdia, que eu leve a União;
onde houver dúvida, que eu leve a Fé;
onde houver erro, que eu leve a Verdade;
onde houver desespero, que eu leve a Esperança;
onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
onde houver trevas, que eu leve a Luz.

Senhor,
Fazei que eu procure mais:
Consolar que ser consolado,
compreender que ser compreendido,
Amar que ser amado.

Pois é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se ressuscita para a Vida Eterna.



Deixem-me falar de Amor



Fala-se tanto de amor! Sim, de amor, assim, com letra pequena, porque não vale nada.
É uma palavra gasta, velha, desperdiçada. No entanto, na minha opinião, para crentes e ateus, para todos os Homens e Mulheres, só o Amor pode servir de padrão de Vida, porque ele tudo ensina, tudo conduz, tudo enforma, para tornar o nosso tempo neste mundo digno de ser vivido.
S. Paulo sabe que eu o acho um tanto pragmático, ter-lhe-ia feito bem talvez ter vivido um Amor terreno para lhe dar mais um pouco de aceitação do que somos, mas tem páginas admiráveis e a famosa Epístola aos Coríntios é um dos meus textos de eleição. Comemorámos, o meu Marido e eu, o nosso 40º aniversário de casamento no dia 3 de Maio de 2003. Ao princípio, ele achou ridículo: ninguém comemora, com uma festa aberta a convidados, 40 anos de casamento! Mas nessa tarde, na Missa celebrada especialmente para o efeito, ele leu a Epístola aos Coríntios (eu tinha pedido licença para tal, visto que não era a do dia) e depois – espanto dos espantos – quem fez a homilia fui eu. Porque eu queria que toda a gente soubesse que aquele Homem me tinha amado, a mim, com todas as minhas imperfeições, daquela maneira. Porque eu tive Pai e Mãe, mas quem me ajudou a crescer e a ser o que sou, foi o meu Marido, o Pai dos meus Filhos. E que me aconselha e ajuda ainda hoje. Se eu o quiser ouvir…
Daí a 23 dias, no dia 26 de Maio, faz, portanto, amanhã 5 anos, morreu como merecia, em paz e suavemente, durante a sua querida e imprescindível sesta da tarde. Nunca soube definir, até hoje, se devia agradecer ou zangar-me por não se ter despedido de mim. Eu não estava em casa. Então, para quem a não tiver à mão de ler, aqui vai a Epístola:

Ainda que eu fale as línguas dos homens
e dos anjos, se não tiver Amor,
serei como o bronze que soa
ou como o címbalo que retine.
Ainda que eu tenha o Dom de profetizar
e conheça todos os mistérios e toda a ciência,
ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto
de transportar montanhas,
se não tiver Amor, nada serei.

E ainda que eu distribua todos
os meus bens entre os pobres
e ainda que entregue o meu próprio corpo
para ser queimado,
se não tiver Amor,
nada disso me aproveitará.

O Amor é paciente, é benigno,
o Amor não arde em ciúmes,
não se ufana, não se ensoberbece,
não se conduz inconvenientemente,
não procura os seus interesses,
não se exaspera,
não se ressente do mal;
não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade.
tudo sofre, tudo crê, tudo espera,
tudo suporta.

O Amor jamais acaba.
Mas, havendo profecias, desaparecerão;
havendo línguas, cessarão;
havendo ciência, passará.
Porque em parte conhecemos,
e em parte profetizamos.
Quando, porém, vier o que é perfeito,
o que então o é em parte será aniquilado.

Quando eu era menino,
falava como um menino,
sentia como um menino.
Quando cheguei a ser homem,
desisti das coisas próprias de menino.
Porque agora vemos como em espelho,
obscuramente, e então veremos face a face;
agora conheço em parte e então,
conhecerei como sou conhecido.

Agora, pois, permanecem a Fé,
a Esperança e o Amor.
Estes três.
Porém, o maior deles é o Amor.”

Alguns séculos mais tarde, Santo Agostinho escreveria: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.”

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A Oração do embondeiro

terrear

O embondeiro é uma árvore-símbolo, quase sagrada, que se encontra em África quase em toda a parte. Dá um fruto estranho, que consiste numa pasta branca, que me faz lembrar esferovite e está num invólucro verde acinzentado. Esta fruta, chamada múcua, faz-me lembrar uma outra imagem: a de grandes ratos suspensos da árvore pela cauda… Até há poucos anos considerada quase sem préstimo (embora eu sempre tivesse gostado muito dela), a múcua hoje é usada em profusão em sumos, sorvetes e ainda em chá para, dizem-me, tratar a diabetes.
O embondeiro fascina-me e gosto de me sentar debaixo de um, quando posso e quero pensar. Ele transmite-me uma segurança, um sentimento de protecção, uma dimensão do meu tamanho que não consigo explicar mas que sinto passar da árvore para mim de uma forma quase palpável. É o lugar escolhido, nas comunidades, para se resolverem assuntos importantes e uma “conversa debaixo de embondeiro” é uma conversa para dar conselhos, para partilhar saberes.
Dos seus troncos largos, muito grossos na parte inferior, saem braços (não consigo vê-los como ramos) que se elevam ao céu numa prece permanente. E, por algum dom que não sei se devo agradecer ou lamentar, eu ouço os braços do embondeiro, na sua oração contínua. E o que ouço é isto:

Meu Deus, olha para África!
Estendo os meus braços para Ti,
Creio que me fizeste assim grande e forte
Para que o meu grito chegasse aos Teus ouvidos.
Senhor, olha para os Teus Filhos Africanos,
Temos sede e fome de justiça,
Clamamos pela tua misericórdia.
Porque quando não tivermos fome e sede de justiça,
Também o nosso corpo ficará saciado.
Meu Deus, estendo os meus braços para Ti,
Porque estamos esquecidos e ninguém ouve
Os gritos das nossas crianças quando vão dormir com fome.
Abre os Teus olhos para ver as suas faces secas,
Porque as nossas crianças choram sem lágrimas.
Os meus frutos baloiçam ao vento, Senhor,
E pedem-te que ensines os nossos próprios Irmãos
A olharem para nós fraternalmente.
Não deixes, oh meu Deus, que o pão que mataria a nossa fome
Seja transformado em máquinas de morte entre nós mesmos.
Meu Deus, olha por África,
Porque ela está sedenta de Ti,
E Te ama e respeita em todas as Tuas criaturas:
Vêem em mim a Tua força e estatura,
Respeitam os rios, as montanhas e os vales,
Nunca se esquecem de Ti, chamando-te por mil nomes.
África, África, suplicam os meus braços estendidos!
Abre os Teus ouvidos, ouve a minha voz, Senhor,
Protege-nos com o Teu Amor, somos Teus Filhos também.
O meu povo acredita que Tu falas através de mim,
Vem tratar das suas makas debaixo dos meus ramos
Os mais novos confiam nos conselhos
Que ouvem da boca dos mais velhos
Encostados ao meu tronco robusto.
Não desiludas o meu Povo, Senhor, ouve a minha voz
Que os meus braços elevam até Ti.
Nós esperamos. Sempre esperaremos.
África é, como a fizeste, Tempo e Espaço.