segunda-feira, 14 de julho de 2008

Como não ter saudades?


Quando me perguntam por que me sinto tão bem em Angola e Moçambique, tenho sempre de ter cuidado a responder, a encontrar uma resposta diplomática. Como este espaço é mais restrito relativamente às pessoas que não me compreenderiam se lhes desse a resposta verdadeira, vou fazê-lo aqui e agora. Agora, porque, finalmente, assentei arraiais: já fui ao cabeleireiro, comprei três mudas de roupa, parte dos livros que queria, já visitei a minha Mãe e já acabaram as visitas ao meu pé...
Dito assim parece ingratidão, mas não é. Vieram pressurosamente visitar-me pessoas que nunca se tinham interessado senão por dizer "que aqui também há muito que fazer". E vieram para saber como é que me tinham operado num lugar como Angola, como se eu tivesse vindo de fazer companhia ao Dr. Livingstone...
E agora, que é hora de agradecer do fundo do coração o carinho de que me vi rodeada em Luanda, vou dizer-vos por que já estou com saudades. Olhem para esta foto: foi tirada 4 dias antes de eu regressar. Um grupo com quem estive a trabalhar sobre "Humanização dos cuidados e procedimentos clínicos". Eu, ali no meio, rodeada por canadianas humanas, com um ar um pouco assustado, apesar do amparo. E vejam aqueles rostos sorridentes que vieram no seu tempo livre, ao sábado, cheios de boa vontade para aprender (e partilhar o que sabem). Só quem vive em Luanda saberá dar valor quando realço que é a um sábado: quase o único dia para fazer compras, para estar com a família, para tratar das coisas domésticas.
Verifiquem se vêem alguém com um ar aborrecido e fiquem a saber que, deste grupo, apenas uma pessoa não anda a estudar à noite, com um enorme sacrifício, que se torna ainda maior quando o comparamos com o dos nossos alunos dos cursos nocturnos.
Em Portugal, sou uma anciã (se tiver que ser notícia de jornal, será assim que aparecerei em título...). Em Angola sou "uma mais velha", a quem se deve Amor e respeito.
Em Portugal, se eu quiser fazer aquilo de que gosto, mesmo de graça, estou a roubar o lugar a outro que quer trabalhar (sei do que falo). Angola tem milhões de pessoas ávidas de aprender, com uma elevada auto-estima, cheios de confiança no futuro, embora saibam que o caminho será longo e difícil e que me recebem de braços abertos, vá eu para onde for, em Malanje ou em Viana, no Mussulo ou em Kibaxi.
Em África, posso ser útil em tanta coisa que me sinto mais nova, venho cada vez mais cheia de energia e, principalmente, sinto-me apreciada como pessoa, seja o que for que faça: desde ensinar a fazer contas com pedrinhas, a fazer uma sopa com beldroegas e pouco mais, a ajudar uma Mãe em qualquer parte que não sabe que fazer para aliviar as dores de barriga do seu bebé. Ou ainda, a trabalhar com gente que lida com doentes e quer aprender a trabalhar de uma forma mais humanizada. Ou a "pôr umas vírgulas no sítio..."
A maior parte das vezes, o que faço é apenas "trazer para fora" o humano que há em nós. E depois "humanizá-lo" no sentido de o integrar na nossa vida, pessoal e de trabalho, de forma tão presente como dizer "Bom dia!"
Imaginem gente que viveu uma guerra longa, que teve de lutar em todos os sentidos possíveis para sobreviver. Encontrar nestas pessoas humanidade e solidariedade, depois do que passaram é já, por si, quase um milagre. Mas encontrar pessoas que estão dispostas a procurar em si e fora de si modos de cuidarem dos outros mais humanizadamente (acabei de criar o advérbio...) é mesmo um milagre.
Enquanto muitos de nós, de crise em crise, gemem mas não fazem nem deixam fazer. Antes de continuar, só um parêntesis para dizer que, apesar de tudo e sabendo que vai ser duro e difícil, ainda acredito que Portugal pode ter futuro. Mas só se nós quisermos. Todos. Porque os sacrifícios necessários terão de caber a todos.
Há muitas dificuldades em Angola? Há. Falta Escola, a Saúde também precisa de ser mais alargada, mas àquelas pessoas que me vieram visitar para "ver com os seus próprios olhos" como é que era possível eu ter sido operada em Angola eu digo: não consigo imaginar-me a ir para um bloco operatório em Portugal com mais confiança e sentido de segurança do que senti no dia 28 de Maio, quando pus o meu pé nas mãos do Dr. David Abel. E do anestesista Dr. Zacarias. E, já agora, informo que durante os cerca de 90 minutos da cirurgia, com anestesia regional (só da pélvis para baixo), estive quase sempre a contar histórias e anedotas!
Para todas as pessoas que me ajudam deixando-me ajudá-las, para todos os Angolanos que, com os pés em terra, isto é, sabendo que Angola não é um paraíso, é um país com gente, boa, má e medíocre, mesmo assim confiam e trabalham para Amanhã, para todos os que não olham à cor da pele porque isso é apenas um acidente, para os meninos todos, vai o meu obrigado representado no meu obrigado ao Alcino Paulo, à Amália, à Irondina, à Neuza, à Mirabel, e a todos os outros que, na foto, me amparam para que, entre eles, me sinta segura.
Continuem a confiar e a trabalhar. Angola será o que vocês quiserem. E eu já estou com saudades...