segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Livros, livros, livros

As pessoas da minha geração têm, geralmente, uma tentação de conservar as coisas. Ou antes, têm dificuldade de se desfazerem das coisas. A Psicologia pode explicar os fundamentos para esta atitude com relativa facilidade, mas como sempre um pouco em contra-corrente, ando com uma vontade louca de arranjar coragem de me desfazer de mil miudezas, acumuladas em duas casas, ainda por cima. Dar, ninguém quer receber. Uma vez já fiz um leilão, tudo a um euro, e lá despachei umas coisas, mas havia uma motivação que levava as pessoas a comprar: a quantia apurada, devidamente registada, era para ser entregue numa obra em Moçambique.
Este preâmbulo serve apenas para eu expor um problema: o que tenho mais de meu, realmente meu, são livros. E não consigo arranjar coragem para me desfazer deles! Vejo-me aflita para resistir à tentação de comprar mais, o que é praticamente impossível, e depois não sei onde os hei-de pôr.
Bem, mas esta conversa de livros traz agarrada a si uma das coisas mais bonitas de que tive conhecimento como Professora. Não aconteceu comigo, mas garanto a verdade dos factos.
Numa escola dos arredores, durante a experiência da gestão flexível do currículo, o Presidente do Conselho Executivo conseguiu uma adesão extraordinária de toda a comunidade escolar para mudar algumas coisas: não havia campainha, os docentes planificavam em conjunto e quando um tinha necessidade de faltar avisava outro que estivesse livre (tinham os contactos e os horários uns dos outros) e os alunos estavam sempre acompanhados.
Por outro lado, sendo uma zona em que havia algum policiamento mais visível, alguns agentes colaboraram com o pedido feito de "acordarem" alguns alunos que não tinham quem os acordasse. Mas numa de serviço cívico e não de autoridade.
Outra particularidade que eu verifiquei foi a de que os pais eram chamados e recebiam uma espécie de "lições": o seu menino (!) precisava de tempo para brincar, portanto, nada de o obrigar a ir a correr buscar a avó ao centro de dia, ou levar-lhe o remédio, ou ir buscar o irmão à ama... Não é que não fosse bom ele fazer isso, mas tinha o direito a ser criança nem que fosse meia-hora. Além disso, precisava de um lugar para estudar - nem que fosse a mesa da cozinha - e precisava de um lugar certo para pôr os livros... Aí, houve uma gargalhada quase geral: "Lugar para pôr os livros? Quer que a gente compre uma estante, não? Ainda mais essa!"
Mas, pacientemente, se explicou que com dois tijolos e umas caixas de madeira de supermercado se fazia uma prateleira. Ele, Professor, quando se casara, tinha sido assim que resolvera o problema porque o dinheiro não abundava...
Bem, para encurtar a história, vamos ao importante: apesar dos cuidados, havia um aluno que estava quase a reprovar por faltas e como a montanha não ia a Maomé, foi Maomé à montanha: a directora de turma resolveu ir a casa do faltante e, chegando lá, encontrou o seu aluno à bulha com um vizinho e as mães já a começarem a puxar o cabelo uma à outra. A Professora tossiu (é uma maneira muito inteligente de chamar a atenção de alguém...) e a mãe do aluno apartou-se da outra e gritou para o filho. Oh Jorge, olha a tua Professora; anda-te embora qu'isso é gente que nem livros em casa tem!"
Que belo diploma aquela mãe passou àquela Escola!