quinta-feira, 22 de maio de 2008

A Oração do embondeiro

terrear

O embondeiro é uma árvore-símbolo, quase sagrada, que se encontra em África quase em toda a parte. Dá um fruto estranho, que consiste numa pasta branca, que me faz lembrar esferovite e está num invólucro verde acinzentado. Esta fruta, chamada múcua, faz-me lembrar uma outra imagem: a de grandes ratos suspensos da árvore pela cauda… Até há poucos anos considerada quase sem préstimo (embora eu sempre tivesse gostado muito dela), a múcua hoje é usada em profusão em sumos, sorvetes e ainda em chá para, dizem-me, tratar a diabetes.
O embondeiro fascina-me e gosto de me sentar debaixo de um, quando posso e quero pensar. Ele transmite-me uma segurança, um sentimento de protecção, uma dimensão do meu tamanho que não consigo explicar mas que sinto passar da árvore para mim de uma forma quase palpável. É o lugar escolhido, nas comunidades, para se resolverem assuntos importantes e uma “conversa debaixo de embondeiro” é uma conversa para dar conselhos, para partilhar saberes.
Dos seus troncos largos, muito grossos na parte inferior, saem braços (não consigo vê-los como ramos) que se elevam ao céu numa prece permanente. E, por algum dom que não sei se devo agradecer ou lamentar, eu ouço os braços do embondeiro, na sua oração contínua. E o que ouço é isto:

Meu Deus, olha para África!
Estendo os meus braços para Ti,
Creio que me fizeste assim grande e forte
Para que o meu grito chegasse aos Teus ouvidos.
Senhor, olha para os Teus Filhos Africanos,
Temos sede e fome de justiça,
Clamamos pela tua misericórdia.
Porque quando não tivermos fome e sede de justiça,
Também o nosso corpo ficará saciado.
Meu Deus, estendo os meus braços para Ti,
Porque estamos esquecidos e ninguém ouve
Os gritos das nossas crianças quando vão dormir com fome.
Abre os Teus olhos para ver as suas faces secas,
Porque as nossas crianças choram sem lágrimas.
Os meus frutos baloiçam ao vento, Senhor,
E pedem-te que ensines os nossos próprios Irmãos
A olharem para nós fraternalmente.
Não deixes, oh meu Deus, que o pão que mataria a nossa fome
Seja transformado em máquinas de morte entre nós mesmos.
Meu Deus, olha por África,
Porque ela está sedenta de Ti,
E Te ama e respeita em todas as Tuas criaturas:
Vêem em mim a Tua força e estatura,
Respeitam os rios, as montanhas e os vales,
Nunca se esquecem de Ti, chamando-te por mil nomes.
África, África, suplicam os meus braços estendidos!
Abre os Teus ouvidos, ouve a minha voz, Senhor,
Protege-nos com o Teu Amor, somos Teus Filhos também.
O meu povo acredita que Tu falas através de mim,
Vem tratar das suas makas debaixo dos meus ramos
Os mais novos confiam nos conselhos
Que ouvem da boca dos mais velhos
Encostados ao meu tronco robusto.
Não desiludas o meu Povo, Senhor, ouve a minha voz
Que os meus braços elevam até Ti.
Nós esperamos. Sempre esperaremos.
África é, como a fizeste, Tempo e Espaço.

Gaiola dourada

O José Matias disse-me, em comentário, que tinha tido acesso a Luanda, via You Tube e que tinha ficado impressionado. Esperaria informações minhas.
Gostaria de poder responder a todos, provavelmente muitos mais do que o Zé, presumo eu (que sou muito presumida…) mas não sei concretamente qual o vídeo em causa. Fui ver o que havia, sob o título genérico de “Luanda, You Tube) e o que me apareceu de mais recente (data de 13 de Abril) é apenas uma parte ínfima de uma Luanda inexistente. Falta naquela reportagem, com um belo fundo musical, dizer que a baía não está assim, o banco de Angola perdeu a imponência entre as muitas construções de que só está defendido pela Marginal. Falta mostrar os bairros: o Cazenga, a Sambizanga, o Marçal, o Rangel, o Terra Nova, todos os velhos musseques agora superlotados (e promovidos a bairros) mas sem estruturas básicas mínimas.
Mas então por que falo de uma gaiola dourada? Porque eu considero que, embora conheça a realidade real, a verdadeira, para a encontrar tenho que sair da gaiola dourada em que me meto e me metem quando aqui estou. Seja a trabalhar nas mais longínquas comunidades das províncias do interior, quer seja num comunidade próxima de Luanda, apesar de viver sem as chamadas “comodidades” (uma cama, banho, electricidade, variedade de víveres), toda a minha gente me tenta preservar do Mal. E o que é o Mal? São os possíveis assaltos, as pedinchices profissionais, o contacto com pessoas reconhecidas como hostis à presença de brancos, de portugueses, de cristãos, um por um ou por atacado. Guardada, mimada, protegida, como uma Mamã Grande, sei, no entanto, o que se passa. Sei da prepotência de algumas autoridades, do descaminho de bens enviados, da necessidade de “comprar” alguns direitos que, como direitos, são gratuitos na sua essência. Mas também sei dos que lutam pela sua gente, pela sua saúde, por melhor qualidade de vida, que aceitam com uma gratidão que quase me envergonha tudo o que podemos ensinar. Porque, como já disse, a minha “ajuda” consubstancia-se, essencialmente, em ensinar o que sei. E estou sempre disposta a aprender para ensinar o que não sei mas é preciso saber. Porque as minhas possibilidades de acesso ao conhecimento e informação são infinitamente superiores à deles. E ainda porque só por acaso é que eu não sou um deles e perante o meu Criador, serei, certamente, menor que muitos deles.
Neste momento em Luanda, trabalhando com jovens no sentido de os preparar para lidar com pessoas em situação de fragilidade (doença, especialmente sida, velhice, pobreza extrema, orfandade, etc.), estou numa gaiola ainda mais dourada: tenho um bom quarto, banho, electricidade, alimentação variada, INTERNET (Aleluia!), o mar para me acalmar a 20 metros de casa e para eu mergulhar ao domingo a 150m. Quando vou à cidade (estou na Ilha de Luanda, para perceber a situação, o Google Earth ajuda muito), vou de carro com alguém (mas ainda só fui uma vez tratar de um assunto numa gráfica). Tenho aqui tudo, dentro da minha gaiola… Até estranho! É claro que tenho muito, muito que fazer: 4 a 5 horas de formação sobre a tal humanização dos cuidados (que já veio preparada de Portugal), atendimento de pessoas que me querem falar das suas dúvidas, dos seus problemas, dos seus sonhos. Pessoas, sempre jovens, a quem tenho e quero instilar auto-confiança, auto-estima, respeito pelo estudo e pelo trabalho, em especial. Tenho que ajudar em problemas de traduções, de aulas, de corrigir textos, de fazer pontuações. E ao pé de casa há uma escola básica grande, de onde muitos jovens já descobriram que há por perto uma Mãezinha que lhes pode dar umas explicadelas de Matemática e Português…
Mas isso não me inibe, até porque entre Fevereiro e Março estive um pouco mais de fora da gaiola, de saber que Luanda é um exemplo muito real e completo de como uma cidade pode conviver, lado a lado, em dois mundos completamente antagónicos. Creio poder afirmar sem erro que Luanda é, hoje, a cidade mais cara do mundo! É a cidade com o trânsito mais caótico e demorado que se pode imaginar, pois não se pode dizer que haja rede oficial de transportes públicos, há umas carrinhas azuis e brancas, os candongueiros, que levam as pessoas em condições por vezes bastante precárias. Até porque o seu número é enorme e os motoristas julgam-se os donos das ruas. Apenas a reduzidíssima velocidade exigida pelo volume de trânsito justifica que, apesar dos muitos acidentes, haja poucos feridos graves e ainda menos mortos, felizmente. Aqui, tudo parece andar “malembe, malembe” (devagar, devagarinho)
Os hotéis estão cheios a 101%... e o seu preço é o mais alto do mundo. Não há vagas. Porquê? Aterram diariamente no aeroporto dezenas de aviões cheios, de pessoas que precisam de ficar em algum lugar! Vêm pessoas para pesquisar negócios grandes, pequenos, médios. Vêm pessoas à procura de mudar de vida, de emprego, de horizontes. Vêm pessoas para fazer a manutenção dos equipamentos que Angola comprou em Portugal, na Alemanha, na Rússia, em todo o mundo. Os meus colegas de almoço são 4 engenheiros checos com que me vou entendendo com o inglês deles. Vem gente boa, vem gente oportunista, vem gente de toda a qualidade e procura o seu nicho nesta Babel.
Nunca, em lugar nenhum, vi a ostentação e a pobreza (não falo de miséria, que também há, mas isso, para mim, é outra coisa) tão co-existentes lado a lado. Nunca encontrei tanta gente capaz de ajudar por pura gratuitidade ao pé de quem nos quer multar por tirarmos uma fotografia de um local em que tal é permitido (depois a multa resolve-se a “conversar”, sendo que “conversar” é um eufemismo). Há violência? Há, sim. Primeiro, a “violência” do incómodo pelo pedir constante das crianças, que mais tarde se transforma em quase extorsão e, depois,, se não encarreirarem, acaba em gangue. Mas nada que eu possa, em sã consciência, achar mais visível do que em outros países. Pelo contrário.
E depois, temos sempre aquela ideia de que Angola é tão rica e, no entanto, está tão demorada a melhoria do padrão de vida: os sistemas de saúde, de transporte e, especialmente, porque está na base de tudo, a Educação, dizemos todos, deveriam já ter atingido um melhor nível. Mas a paz é recente e o dinheiro não compra o conhecimento! É preciso tempo para formar pessoas e isso é a maior dificuldade.
Todavia, eu continuo irremediavelmente apaixonada por Luanda, por Malange, por Viana, pelo Úcua, por Kibaxi, pelo Rio Kuanza, pela Barra do Dande, pelo Mussulo, pelo Cabo Ledo, pelas estradas e picadas, por estas gentes todas, pobres e ricos, bons e menos bons, porque quero acreditar que, de facto, a maior parte das vezes, “o Homem é o Homem e a sua circunstância”.
Vou contando. Zé, para ti, em especial, o pedido: identifica-me o acesso. E fica a saber que se eu tivesse que escrever uma carta ao Menino Jesus só sobre a “minha África”, Senhor meu, que tarefa imensa!