
Na quarta-feira soube que uma Colega nossa andava, há mais de dois anos, a depositar cinquenta euros por mês numa conta minha. Fiquei assustada! Nunca tinha dado por nada e o NIB que ela me deu, para confirmar, não é o que tenho por meu. Lá fui à CGD e, com o tal NIB, descobrimos a conta: estavam lá 1437 euros! Pude, finalmente, respirar. E a Alexandrina telefonou-me ontem à noite a dizer que já tinha depositado o que faltava para arredondar a conta.
Para onde vão estes 1500 euros? Para Invinha, Gurué, Alta Zambézia, Moçambique. Onde vivem estes meninos cuja foyo tirei no dia 19 de Abril de 2006. Eram, então, brilhantes alunos da ^ª classe. Sim, não leram mal e eu não me enganei: eram brilhantes alunos da 5ª classe!
E vai daí, fui ao meu Diário de Moçambique e resolvi transcrever o que escrevi no dia 2 de Maio desse ano. Aqui vai:
"O que é ajudar?
Por que será que sinto esta pergunta a martelar-me a cabeça e a apertar-me o coração com tanta frequência? Estou, como já disse, na província da Zambézia, em Moçambique. Mais concretamente na povoação de Invinha, a 18 quilómetros de Gurué, sede de distrito e de diocese. Estou no Moçambique profundo, que eu não imaginava existir, em pleno século XXI, embora saiba que estou a trabalhar num dos países mais pobres do Mundo. Para trabalhar é que vim. Para ajudar. Mas o que é ajudar?
Quanto mais me envolvo com o local e aprendo como vive esta população mais se me coloca esta pergunta. E ponho-me a pensar se estaremos, eu e os outros que por aqui andam, especialmente tantos jovens, a ajudar alguém. Mas a questão ainda é mais premente quando penso nas grandes organizações não governamentais. Será que resolvem o problema da Fome mandando para cá milho e farinha? Ou isso não servirá, antes, para pôr fim à já quase inexistente agricultura? Para quê cultivar, se posso ter de graça? E o que acontece ao comércio local, que não poderá competir com um produto a custo zero?
Para que se manda para aqui tanta roupa, muitas vezes inadequada, quando, depois, não há condições para a lavar, para a remendar? Quando ela se veste e nunca mais se despe senão quando desaparece no próprio corpo, por completo? Que remedeio eu se for visitar as pobres casas da vizinhança e lhes levar dois bens preciosos (um pedaço de sabão e uma caneca de sal) que lhes dão para dois dias? Não serão os dias seguintes ainda mais difíceis?
Então, o que se havia de fazer? Conselhos e opiniões, se valessem alguma coisa, não se dariam – vender-se-iam. No entanto, vou atrever-me a dar a minha opinião.
Moçambique e outros países nas mesmas circunstâncias precisam menos de esmolas do que de TRABALHO. Antes de explicar o que quero dizer com isto, devo, contudo, apontar algumas excepções: os moçambicanos precisam de medicamentos, precisam de ajuda médica, precisam de instalações onde se possam tratar. O centro de saúde de Invinha não tem água, não tem luz (à noite trabalha-se à luz de uma vela), chove lá dentro, não tem quase remédios nenhuns. O que a única Enfermeira que lá trabalha, pertencente à Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, consegue fazer, com o que tem, é qualquer coisa de inexplicável. Esta noite dormiu lá, no chão, numa esteira. O que ela faria no mesmo edifício com água e luz, sem ser a água da chuva a escorrer pelas paredes abaixo e em cima das três camas lá existentes, com betadine, pomadas várias, analgésicos, vitaminas e pouco mais, seria certamente elevado exponencialmente.
Agora que já dei um exemplo concreto, vou continuar com a minha linha de pensamento: esta população precisa de trabalho. Quem não tem educação, no sentido de instrução, não pode ser acusado de falta de iniciativa. Por que será que as ONG’s, em vez de dar, não aplicam os seus donativos em estruturas empresariais, dirigidas durante um determinado período de tempo até formar trabalhadores e pequenos gestores? Já alguém pensou que, ao dar, estamos a retirar alguma dignidade ao ser humano que está à nossa frente?
Sei que, há algum tempo, uma dessas organizações, a Human People, foi muito criticada na Europa porque vendia as peças de vestuário que lhes tinham sido oferecidas. Aqui, no terreno, sei que fizeram e estão a fazer o que deve ser feito. Vendendo, ainda que a preços pouco mais do que simbólicos, dão valor aos artigos. Com o dinheiro conseguido, investem em campos muito carenciados, como na promoção da criança e da mulher e na prevenção da doença, especialmente malária.
É preciso estimular um comércio justo. Numa região em que uma pequena parte da população se pode considerar verdadeiramente privilegiado se ganhar o equivalente a 34 euros por mês, pois a grande parte talvez tenha de se governar com metade ou ainda menos, como se pode pagar um quilo de sal a 33 cêntimos de euro? E uma barrinha de sabão enfezado, com uns 20 centímetros, pelo mesmo preço? Sabem que uma dúzia de ovos custa mais de 1,5 euro? Quando cheguei e me abasteci, a 500km do local onde estou, na cidade de Quelimane, por puro descuido, comprei um queijo português, marca Elos, nada do outro mundo, que pesaria pouco mais de meio quilo. Mas era, sim, algo de outro mundo: primeiro, porque não reparei no preço – 470.000 meticais- ou seja, ao câmbio actual, a módica quantia de 15 euros – e depois, porque uma pessoa sente-se, no mínimo, desconfortável, a comer queijo quando vê o que se come, na casa ao lado.
Ensinar – a ler, a cultivar a terra, a coser roupa, a lavar, a ter iniciativa, a… isso, sim, talvez seja ajudar. O resto é ilusão para calar alguma voz que grite dentro de nós. Mas para ensinar, é preciso primeiro aprender. Porque os moçambicanos não precisam necessariamente de aprender as coisas que eu sei. Uma das coisas que por aqui tenho comprovado é que, de facto, “de boas intenções está o Inferno cheio”. Até à próxima. Talvez eu consiga então ver alguma luz ao fundo do túnel."