Conferência de Berlim, paternalismo europeu, cegueira nacional (sub-título)
Ficámos em 1974-75. Houve a onda do retorno, incluindo muitíssimos que não retornavam a lugar nenhum porque já eram africanos, não europeus. Por muita trágico que tivesse sido, ainda aqui hei-de escrever e provar que esse retorno foi uma extraordinária oportunidade perdida. Mais uma do nosso rosário de desperdícios. Houve a descolonização “exemplar”. Exemplar? Sem comentários. Os portugueses fugiram de África com medo do que tinham visto acontecer após as outras independências. Os portugueses fugiram de África porque pressentiam o vulcão da guerra civil prestes a entrar em erupção. Porque, apesar de 99% não o ter aprendido na Escola, todos adivinhavam o que poderia advir de o facto de os novos estados terem sido criados a régua e esquadro na Conferência de Berlim.
Por dentro desses estados estavam nações, povos que competiam entre si há milénios, com uma base cultural única mas milhares de variantes sobre o mesmo tema. Os estados africanos foram criados por quem não conhecia África, não a respeitava, não a via como importante. Quando me lembro de que o Ex-Congo Belga era uma propriedade particular do Rei Leopoldo fico incomodada.
Os portugueses saíram e deixaram os povos no mato sem cachorro (para amenizar) … Sem quadros, sem classe média, sem escolas, sem auto-estima. Ou antes, existia algo de tudo isto mas em quantidade muito reduzida. Porque ninguém dá o que não tem senão conselhos. E cada um com muita vontade de, finalmente, poder mandar. Ah, o gosto do poder!
É claro que mantenho tudo o que disse sobre a minha infância. E a do Raul. E a do Ernesto Lara Filho. E tantos outros como nós, uns mais abonados economicamente, outros mais pobres. Mas chegava aquele momento em que nos separávamos. Muitas vezes sem saber porquê. (Estou a ouvir, na minha cabeça, a Maria Bethânia a cantar aquela despedida do menino da roça que vai para a saudade e pensa nunca mais esquecer o seu amiguinho de infância).
Não havia racismo? Havia, sim, em toda a África e de todas as cores. Havia e há. E se entre nós não havia apartheid, se as escolas estavam abertas a todos, não é menos verdade que se um negro queria estudar, as questões, ainda que não expressas, estavam lá, escritas em letras grandes: “Vai estudar para quê? Qual a intenção? Pretende ser o quê?”
E depois, mesmo com muita vontade, mesmo a saber, como eu sabia, que a nossa salvação estava na Escola, quem ficaria a tomar conta dos irmãos? E dos mais velhos? E acarretar a água? E depois ir trabalhar de criado, de lavadeira, de cozinheiro, para a D. Cacilda e aumentar e melhorar o pão-nosso de cada dia? Como arranjar dinheiro para o alambamento, para a bicicleta? Para mais umas chapas de zinco novas?
Vou intercalar aqui um episódio que talvez ajude a explicar melhor algumas coisas: tinha eu os meus 11 anos e andava quase há dois a “implorar” ao meu Pai que me deixasse estudar.
Entretanto, adoeci, com o que se chamava, eufemisticamente, “uma fraqueza geral”. Pudera, era um pingo de gente, trabalhava mais de 10 horas por dia e ajudava a criar um irmão caçula. Para ver se me calavam e se eu descansava um pouco, fui passar duas semanas à Roça S. Luzia, no Úcua, a casa de um casal conhecido dos meus pais. De noite, fugia daquele grupo de velhos e ia para a sanzala, o quimbo, sentar-me com as pessoas debaixo do embondeiro grande, a ouvir o soba, enquanto uma fogueira afugentava os mosquitos.
Na segunda noite o soba olhou para mim e disse o seguinte: “Olha só, aquela menina está aqui com a gente, mas um dia vai aparecer aqui um meu irmão que vai dizer:” Vai para a tua terra!” Mas a terra dela é aqui, como pode ir para a terra dela? Depois, eu vou perguntar: “Quem te disse que tu podes mandar?” E ele vai-me responder que manda porque ele é filho do leão e o leão manda em todos. E nessa altura eu vou responder e dizer que não senhor, quem manda sou eu, porque sou filho do jacaré e quando o leão vai beber água, o jacaré pode dar uma patada com o rabo e matar o leão.
Mas então, vai aparecer outro meu irmão que diz que quem manda é ele, que é filho de cobra surucucu, que mata tudo o que ela quer só com a picada do rabo dela. Mas ainda não sabemos quem vai mandar mesmo, porque depois vão aparecer uns poucos de meus irmãos, vão-nos rodear, e vão dizer:” Quem manda somos nós, que somos filhos dos mabecos. Nós somos pequeninos, mas andamos todos juntos, e ficamos ali parados debaixo da árvore onde tu te escondeste e vamos esperar até tu caíres. Porque nós nunca nos cansamos de esperar.”
Fico por aqui, por hoje. Mas a procissão ainda vai no adro…
quarta-feira, 4 de junho de 2008
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