sábado, 7 de junho de 2008

Alegrai-vos comigo...

De acordo com o Novo Testamento, pelo menos, antigamente havia o bonito gesto de se chamarem os vizinhos para partilharem as alegrias. Lembremo-nos, por exemplo, da parábola do pastor que perdeu a ovelha e a foi procurar e depois chamou os vizinhos e da mulher que se alegrou e quis partilhar a sua alegria por encontrar a moeda que tinha perdido.
Pois alegrai-vos comigo: encontrei um poema que procurava há uns 50 (cinquenta!) anos. Ouvi-o uma vez só, declamado por uma brasileira fantástica, aqui no antigo cine-teatro Nacional, hoje "Clube Chá de Caxinde", quase o fixei de cor, mas nunca mais tive o vi. Hoje, abriram-se algumas comportas da memória, umas sinapses levaram a outras, e aqui está ele. É longo, talvez, mas para mim é belíssimo. Alegrai-vos comigo, pois encontrei o meu poema:


Poema da Maternidade

Pode lá ser! Não quero, não consinto!
Tudo em mim se revolta: a carne, o instinto,
A minha mocidade, o meu amor,
A minha vida em flor!

É mentira! É mentira!
Se o meu filho respira,
Se o meu corpo consente,
Covardemente,
A minh'alma não quer!
Eu não quero ser mãe! Basta-me ser mulher!
Basta-me ser feliz!
E o meu instinto diz:
"Acabou-se! Acabou-se!
Agora renuncia:
Começa a tua noite: acabou-se o teu dia!
Tens vinte anos? Embora! A tua mocidade
Perdeu chama e calor, perdeu a própria idade.
Resigna-te. És mulher! Foi Deus que assim o quis.
Já foste flor: agora é só raiz." —
Não pode ser! É injusta a minha sorte!
Não quero dar vida a quem me traz a morte!
O meu destino há de ter outro brilho!
Vida, quero viver! E morro, morro...

Filho!
Pode lá ser, Jesus! Eu não mereço tanto!
Filho da minha dor, eu já não choro — canto!
Filho que Deus me deu! Por quê, Senhor,
Há só uma palavra: Amor, Amor, Amor?!
"Dai-me outra voz que nunca tenha dito
Coisas más, coisas vis... e que saiba a infinito...
Dai-me outro coração, mais puro, mais profundo,
Que o meu já se quebrou de encontro ao mundo...
Dai-me outro olhar que nunca tenha olhado,
Que não tenha presente nem passado...
Dai-me outras mãos, que as minhas já tocaram
A vida e a morte... o bem e o mal... e já pecaram...

Filho, por que seria? Ao vires para mim
Mudaste num jardim
Os espinhos da minha carne triste...
E como conseguiste
Dar uma cor de sol às horas mais sombrias?

Meu menino, dorme, dorme,
E deixa-me cantar
Para afastar
A vida, um papão enorme...
Meu menino, dorme, dorme...
Vamos agora brincar...
Que brinquedo, meu menino?
O mar, o céu, esta rua?
já te dei o meu destino,
Posso bem dar-te a Lua.
Toma agora o mar sem fundo...
Ainda achas pouco? Deixá-lo!
Mas por que não vens brincar?
Por que preferes chorar?
Jesus! Que tem o meu filho?
Que vida estranha no brilho
Do seu olhar?
Uma vida inquieta e obscura
Anda a queimar-lhe a frescura ...
Ainda hoje, meu filho, não sorriste
E o teu olhar é triste...
Cheiras a noite, a luto, a azebre ...
Senhor! O meu filho tem febre!
O seu hálito queima, o seu olhar escalda...
Ele que tinha um olhar de estrela ou de esmeralda
E um perfume de flor,
Agora tem na boca um amargo sabor
E cheira a noite, a luto, a azebre...
Senhor! O meu filho tem febre!
Tirai-me dos olhos toda a luz!
Livrai-me da blasfêmia... Deus! Jesus!
Pois se o meu filho morre, se agoniza,
Por que há flores no chão que ele não pisa?
Se num coval o hei de pôr, de rastros,
Por que estarão tão altos os astros?
Senhor, eu sou culpada. . .
Eu sei o que é o pecado
Mas ele, meu Jesus, ainda não tem passado...
Para mim, não há mal que não aceite,
Mas ele, ainda tão perto do teu céu!
A sua vida era beber-me leite...
No olhar com que me olhava tinha um véu
De neblinas, de névoas de outras vidas...
As vezes, tinha as pálpebras descidas
E punha-se a chorar no meu regaço
Com saudades, talvez, do céu, do espaço...
O meu filho tem febre!
Por que andam a cantar pelos caminhos?
Por que há berços e ninhos?
Vida! O meu filho era belo,
O meu filho era forte!
Vida, que mãe és tu? Defende-me da morte!


Vida! Vida! Vida!
Louvado seja Deus! A morte foi-se embora!
Já não tens febre agora!
Louvado seja Deus! O meu menino vive,
Este menino, o meu, que só eu tive!
E pude blasfemar!
E o meu menino chora, e eu posso já cantar!
E o meu menino canta e eu posso já chorar!
O meu menino vive e toda a vida canta,
Toda a terra é uma fresca e sonora garganta!
Que toda a gente o saiba e toda a terra o veja!
Louvado seja Deus!
Louvado seja!

Fernanda de Castro

Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corrupção... Parte 4,5

A Oportunidade Perdida

Decidi, pois, contar-lhes a história e histórias de Portugal. Falei-lhes das nossas descobertas (porque todos, entretanto, ou atiravam uma acha para a fogueira ou davam mais uma deixa). De como Portugal tinha sido rico e importante no século XVI. Disse-lhes que o reino quase se despovoara com o desejo de enriquecer depressa (não quis empregar a palavra ganância), que os emigrantes regressavam ricos mas não investiam a sua fortuna para a multiplicar, desbaratando-a em luxos, escravos, aparências.
Contei-lhes que D. Manuel tinha mandado um presente tão magnificente ao Papa, que era apreciado como um espectáculo por todos os caminhos da Europa por onde passava até chegar a Roma. Contei-lhes das riquezas do Brasil, representadas pelo ouro, prata e pedras preciosas e como, também dessa vez (e até praticamente aos princípios do século XX) os portugueses tinham ido atrás da riqueza para, chegando a Portugal, alguns, mesmo analfabetos, comprarem títulos de nobreza, o que servia para remediar o défice nacional que já era crónico. Disse-lhes que sabia de casos de “brasileiros” que tinham delapidado fortunas construindo casas apalaçadas por Trás-os-Montes além e julgando que ser rico e fidalgo era isso e ter almoços de cinco e seis pratos. Muitas vezes, enriqueciam os seus caseiros e administradores das quintas que compravam à nobreza falida, porque os proprietários não trabalhavam nem sequer para vigiar e acautelar o que era seu.

Tinham sido oportunidades perdidas, assim como o continuava a ser a dos emigrantes de então (décadas de 60 e 70) que punham como meta das suas esperanças e trabalhos uma casa “à francesa”, um carro e muita festa nas romarias e feiras. Nada de investir numa agricultura moderna, nada de fazer indústria, nada de dar um curso de engenheiro aos filhos, porque era muito cansativo e era mais fino ser advogado. Disse-lhes ainda que, de facto, como dizia a avó dele, ninguém tinha toda a razão e todos tinham alguma mas que, na minha opinião, também achava mal que se tivessem colocado os regressados das antigas colónias nos hotéis.

E expliquei porquê: naquela altura, Portugal recebeu rios de dinheiro, de países tradicionalmente generosos, para resolver a situação angustiosa em que tantos milhares de portugueses se encontravam. Se, em vez de colocar esses portugueses nos hotéis, lhes tivessem dado uma determinada quantia, por família, e de acordo com o número dos seus membros, imaginassem eles, alunos, como esses deslocados poderiam ter funcionado como uma extraordinária alavanca para, de uma vez por todas, Portugal sair, finalmente, da cepa torta. Sentia-me segura a dizer o que disse e, a provar que tinha razão, vejam como quase todos esses nossos compatriotas souberam integrar-se e progredir, quase sempre a partir do nada, porque o que tinha vindo para eles estava a servir para pagar hospedagem. Ouviram-me calados, atentos, sem comentários e temi que, naquela altura, eles não tivessem percebido metade dos que lhes tinha acabado de dizer.

Até que, há cerca de seis anos, o tal rapaz, agora um homem, me viu no passeio oposto, atravessou a rua com um sorriso de orelha a orelha e depois dos cumprimentos da praxe, disparou: “Professora, e que me diz agora do que se faz e tem feito dos fundos europeus?”
E acrescentou: “Mais uma oportunidade perdida e julgo que esta é mesmo a última”. Senti orgulho por ter sido capaz, afinal, de lhe explicar o nosso fado. E senti-me comovida por, ao fim de mais de 20 anos, ele se ter lembrado da sua “velha professora de inglês”, porque também ele já estava desperto para as oportunidades de trabalhar e se doía de só encontrar desbarato, longe da sua compreensão. Nós, muitos de nós, não fazemos nem deixamos fazer.


E agora estamos para aqui sem “rei nem roque”, porque, na minha humilde opinião, os nossos governantes são pobres e mal agradecidos. Estão para aí a fazer que fazem, julgam que nós somos todos ceguinhos, ficam melindrados com as verdades e só falta voltarem a dizer “já não jogo mais”. E não se impressionam. São surdos, são cegos. E guardaram o tacto que têm para tactear as oportunidades.

Apetece-me exigir-lhes que façam uma análise SWOT a Portugal. Não achas necessário, Raul?
Bem, estou praticamente a acabar a “minha” História de África. Podem suspirar de alívio…

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Hoje estou ansiosa...


Quem for da minha idade lembra-se de um texto, do livro da 4ª classe, que se chamava “A Mulher minhota”. E começava assim: A mulher minhota trabalha mais do que o homem.” Pois. Começo pelo meu louvor à Mulher Moçambicana. Vejam depois como tudo se interliga. Para ti, em especial, Teresa de Longe.

Mulher Moçambicana,
eu te saúdo,
neste dia que a ti é dedicado.
Em casa, na machamba,
tu és tudo
tudo nasce de tuas mãos, do teu cuidado

Manhã cedo, inda a lua é uma bola,
levantas-te da cama, diligente.
tratas dos filhos, manda-los para a Escola,
para lhes dares um futuro diferente.

Limpas a casa, acarretas água,
cavas a mandioca e o feijão.
Cantas e danças, mas sabe Deus a mágoa
que às vezes mora no teu coração.

Queres um amanhã melhor prá tua terra,
serás o motor dessa mudança.
Forte na paz, forte na guerra
Moçambique põe em ti sua esperança.

Quando vestes a tua capulana
que envergas com orgulho e elegância,
és o retrato da mulher africana
e o teu corpo caminha numa ânsia
de agarrar um Amanhã diferente,
para ti e para a tua gente.
Deus te abençoe, Mulher Moçambicana!

(Mumemo, Moçambique, 7 de Março de 2006)
Moçambique tem mais ministras do que Portugal, umas poucas de governadoras de Província e não são de gabinete. Correm os distritos do seu território e são aguardadas com respeito e expectativa. Os cursos superiores que funcionam à noite estão cheios de mulheres, que trabalham de dia, que tratam da casa, que não têm transporte próprio. Elas estão dispostas a fazer todos os sacrifícios para dar uma vida melhor aos filhos.
Nos bairros suburbanos, as mulheres fazem tudo, sustentam a casa, vendem, compram, viajam para os países vizinhos para negociar. Criam pintos, fazem doces, salgados, comida para vender aos operários, nos passeios. Muitas levantam-se de madrugada e viajam empoleiradas em equilíbrio instável, em cima de camiões que, conforme a época do ano, as trazem com carvão, com couve, com tomate, com laranjas, etc., que vão buscar a centenas de quilómetros de distância. Chegam à cidade por volta das oito horas, depois de terem viajado tempos infinitos, muitas vezes à chuva, outras ao frio, sempre com um fito: que os filhos tenham um futuro diferente do delas. E especialmente as filhas.
Ouso afirmar que, para as mulheres moçambicanas não europeizadas, (portanto, acima dos 40 anos, mais ou menos), os homens só são realmente importantes porque sem eles elas não teriam filhos. Esses, sim, merecem todos os sacrifícios. Às vezes, metidos à força pela boca abaixo. E é ver o orgulho com que algumas mulheres falam da forma como foram educadas: com exigência, a levantarem-se de madrugada para acarretar água antes de ir à Escola, para cavar a machamba ainda noite escura, para aprenderem o seu valor. Por muito que custe a saudosistas, foi entre estas mulheres que brotou a vontade da autonomia, da liberdade. Se os resultados não foram exactamente os desejados, a culpa não foi delas. Por isso continuam a lutar corajosamente, agora contra a discriminação de género, pelo direito à igualdade, pelo fim da violência doméstica.
E será que isto não está a acontecer um pouco por todo o lado? O que é que está bem ou mal? Tudo e nada. Depois de séculos confinadas à cozinha e sala, as mais afortunadas, à lavoura e ao serviço doméstico a maior parte, foi desta última camada que, também em Portugal, as mulheres enfrentaram dificuldades para porem as filhas na Escola, para as levarem até à Universidade. Infelizmente, muitas vezes, só para ouvirem chamar-lhes doutoras. Aí é que está o engano: as raparigas obtêm melhores resultados porque crescem, amadurecem, mais depressa. São, na maior parte das vezes, mais persistentes, têm mais brio. Com as excepções da praxe. O importante, contudo, não está em serem em maior número nas Escolas ou terem classificações mais altas. Julgo que este tempo em que vivemos será o verdadeiro tempo das Mulheres se elas se aceitarem como Mulheres, não para competirem com os Homens, mas para os ajudarem a serem melhores seres humanos.
Faz parte da nossa natureza sermos mais pacíficas e pacificadoras. Não deixemos morrer esta característica. Não queiramos considerarmo-nos melhores do que os Homens. Somos melhores do que alguns, em algumas coisas, e piores do que outros, em outras coisas. E depois, que mal há nisso? Vamos, agora que quase estamos realmente do mesmo lado da barricada, desejando o mesmo – um futuro promissor para os nossos filhos e netos – pormo-nos a discutir que é melhor do que quem? Que tola perda de tempo!
Homens de Portugal, olhem que as vossas mulheres, filhas e namoradas estão a pôr as unhas de fora. Não se assustem: aceitem-nas como iguais na sua diferença, façam-lhes sentir que a diversidade é sempre enriquecedora. (Não as ensinem a mudar um pneu para poderem ter sempre um ponto de vantagem se vos cair em sorte uma daqueles que puxa dos galões em todas as circunstâncias...) Sabem o que a maior parte das mulheres quer ser, de facto, mesmo não confessando? Querem ser Mulheres! Só que, para se poder ser Mulher, é preciso que haja Homens à altura, ora essa! Demos graças a Deus, que parece que vai havendo. Para bem da Humanidade. Mulheres de todo o Mundo, usemos as nossas qualidades intrínsecas para mudar o que deve ser mudado. Façamos tudo o que nos for possível para acabar com a violência, com a guerra, com a discriminação, com a injustiça. Usemos o coração e a cabeça e, certamente, todos, Homens e Mulheres, seremos mais humanos e felizes.

Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corrupção... Parte 4,25


Os "retornados" e eu, eu e os "retornados"

Para falar dos retornados de uma forma mais concreta, vou remeter-vos para uma experiência vivida, nos idos de 1976. Como professora, sempre privilegiei a relação com os alunos, procurando conhecê-los o melhor possível, cada um na sua circunstância pessoal. Ouvia-os muito, dentro e fora da sala, e como costumo dizer, tive que lhes dar, muitas vezes, o ombro e o lenço. Mas uma das coisas de que tenho mais orgulho é do facto de muitos dos meus rapazes e raparigas, homens e mulheres, acharem que eu sabia muito da vida e que tinha uma grande cultura geral. Atenção: não estou a dizer que tenho! Estou a dizer que eles pensavam que eu tinha, o que é diferente.

Ora um dia, nesse ano já longínquo, dava eu aulas na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis (1976-77), estava no auge o regresso dos portugueses do ultramar, e os mais velhos talvez se lembrem, começava a fazer-se sentir um certo mal-estar. Os “portugueses de cá” que tinham recebido parentes em casa começavam a sofrer daquela síndroma de “os hóspedes, aos três dias, começam a cheirar mal”. Outros criticavam o facto de se terem instalado famílias inteiras, em números astronómicos para a altura, nos hotéis do país, dos menos aos mais “estrelados”. Por sua vez, muitos dos regressados (embirro com a palavra “retornados, até porque muitíssimos não tinham retornado a lado nenhum, porque nem sequer tinham nascido em Portugal), também não ajudavam muito a mudar o ambiente.

Muitos desses desalojados, nessa primeira fase de desânimo, só complicavam, com as suas lamentações contínuas sobre as desgraças que lhes tinham acontecido, pelas fortunas e haveres que teriam deixado em África, pelo elevado nível de vida que diziam ter perdido para sempre. Além disso, e de uma maneira geral, parecia que muitos, só por ter atravessado o Equador, se tinha tornado mais cultos e inteligentes e olhavam os “de cá” com uma certa sobranceria. Nós, coitados, éramos os “indígenas” daqui, que não tínhamos saído da cepa torta...
Neste momento da narração tenho a obrigação moral de dizer recebi muitos dos meus parentes (toda a minha família vivia em Angola) quando regressaram, mas que isso não tem nada a ver com o que aqui exprimo.


Depois de vos ter impacientado com este longo preâmbulo, vamos então à história que vos quero contar. Um dia, um aluno chamou a minha atenção pelo ar abatido, preocupado, distraído, que apresentava. Nitidamente, só estava na sala em ofício de corpo presente. A uma certa altura resolvi questioná-lo sobre a sua postura e respondeu-me de imediato, com uma pergunta, como se estivesse naquele preciso momento a pensar no caso: “Professora, por que é que nós, os Portugueses, somos tão pobres? E somos tão invejosos?”
Confesso que, num primeiro momento, fiquei pasmada, siderada. E pedi-lhe que esclarecesse melhor o seu pensamento. Não sabia bem o que ele queria dizer. E foi aí que o nosso rapaz, que neste momento deve ter os seus 47 a 48 anos, contou que a sua casa parecia um manicómio. Havia gente demais para o tamanho da habitação, os familiares que lá se tinham instalado passavam a vida a suspirar por comida especial, a mãe dele dizia que a irmã estava fina demais para o gosto dela, que nem a roupa lavava, etc., etc. Por sua vez, o pai reclamava duplamente: uma, pelos parentes da mulher não terem procurado ajuda junto das instituições competentes para poderem receber acolhimento e abrigo nos tais hotéis. Mas, logo a seguir, criticava essa mesma política, dizendo que os “retornados” estavam a ser alvo de um tratamento especial, pois os hotéis eram muito caros, “alguém se andava a arranjar com a situação” (sic) e, que lhe constasse, nunca os portugueses de cá, em situação de calamidade, tinham recebido esse tratamento VIP.


O pobre do rapaz andava baralhado e confuso com as discussões constantes e particularmente pela alteração de sentimentos entre o momento da chegada dos parentes e o presente. Bem, pareceu-me um caso delicado e nem via bem onde é que ele via a relação da situação com a questão de nós, portugueses, sermos pobres e invejosos. Também foi rápido a explicar: a avó dizia que “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão” e os tios continuavam a lamentar a perda da grande fortuna que diziam ter deixado para trás e a mãe, quando estavam a sós, dizia que era tudo uma grande aldrabice e que a irmã nunca se tinha lembrado dela quando era rica... Decidi contar-lhes a História e histórias de Portugal.

Já vão ver porquê. Num dos próximos capítulos… Para justificar como o retorno dos “colonos” foi mais uma das nossas oportunidades perdidas.

Intermezzo para o Cumpadre Besberto e sua Senhora, minha Cumadre Maria

Queridos Cumpadres, a receita dos coscorões é mesmo uma deliça, e como me ensinaram que coscorões com sonhos se pagam, cá vai disto:
Natal doce

Com abóbora, açúcar e Amor...
Faça sonhos ou doce de barrar.
Se não sabe, leia por favor,
Pois tenho muito gosto em lhe ensinar.

Para os sonhos, coza em pouca água
A abóbora em pedaços bem cortada
Deixe depois, sem pressas e sem mágoa,
numa peneira, a escorrer sem fazer nada.

Depois, com as mãos para juntar o seu Amor.
Amasse bem e junte algum fermento,
Farinha pouca, e bata, por favor,
Juntando uns ovos com muito sentimento.

Pode juntar, se a massa aguentar
Um pouco de aguardente de boa qualidade
Por fim algum açúcar, e comece a fritar,
Em frigideira funda, com óleo à vontade.

Disponha-os num prato bem bonito
Polvilhe com açúcar e canela
Depois, para todos sentirem o Natal,
deixe sair o aroma pela janela

Mas se preferir o doce de barrar
Aqui vai a receita sem segredo,
É fácil, pode experimentar
É sempre bom, escusa de ter medo.

Corta-se a abóbora em pedacinhos
Como se fossem batatas às rodelas
Junte duas laranjas cortadas bem fininhas
Sem casca nenhuma à volta delas.

Pese um quilo e ponha na panela
Depois junte açúcar em quantidade igual
Um cheirinho de água, pauzinho de canela,
E leve ao lume com paciência de Natal.

Vá olhando e mexendo com cuidado
Enquanto outras coisas vai fazendo
Quando estiver pronto, e depois de esfriado
Encha frasquinhos para ir comendo.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corrupção... Parte 4

Soldados, guerras, petróleo, diamantes...

Não falei da guerra. Nem dos “terrorristas”. Vou falar agora. Das guerras, dos terroristas.
Para as pessoas comuns, que não tinham sabido ler os sinais, a “guerra” começou a 4 de Fevereiro de 1961, no Zambizanga. Os dias que se seguiram foram de luto fechado e de uma grande incredibilidade. De algumas vinganças quase pessoais que me coíbo de relatar porque ainda me doem. Lembro o funeral dos polícias mortos e a campanha lançada num dos jornais de todos pormos luto. Os homens deveriam pôr um “fumo negro” na manga da camisa. Usem a imaginação para “verem” como teriam sido vistos aqueles que não puseram luto nenhum.


Da guerra, lembro a impaciência pela demora da chegada do primeiro contingente de soldados portugueses. Da obrigação de irmos assistir ao seu desfile na Marginal, sob um sol inclemente. De os militares serem vistos como “da família”. De um enorme sentimento de fraternidade. De um lado.
Do outro lado, lembro-me da diferença entre a noite e o dia: de dia, éramos os mesmos, de noite ouvia-se gritos, tiros, ameaças: “Vai para a tua terra! Quando te apanhar, vais me pagar tudo! Vou ficar com a tua mulher! Vou dormir com a tua filha! Vou dormir na tua cama!” E no outro dia, parecia que tinha sido apenas um sonho mau. Técnica de guerrilha, que se aprende na tropa.


Quando fomos viver para Malange, acompanhei muitas vezes o meu Marido, no jeep, pelas terras da Baixa de Cassange. Um dia o Raimundo gritou, íamos a caminho do Moma, (levávamos pescada do Cabo congelada para o chefe do Posto, lembro-me): “Chefe, olha um turra! Ali, na beira da estrada.”
Parámos. O “turra” era um infeliz que tinha sido deixado para trás, depois de levar um tiro que lhe entrara pelo alto da testa e saíra por detrás da orelha. Falava. Tinha uma matéria esbranquiçada na testa que o Raimundo, displicentemente, identificou: “Não tem problema. São miolos”. Um pouco mais à frente (talvez uns 100kms) desviámo-nos do caminho para deixar o “turra” num hospital. Onde foi recebido sem dramas nem vinganças. Perdemos-lhe o rasto daí a oito dias. Não havia telemóveis…

Os militares portugueses matavam, morriam, ficavam estropiados, sofriam, apaixonavam-se por África, ficavam, constituíam família ou regressavam com ela atravessada no peito, para o bem e para o mal. Alguns, mudavam de campo. Por consciência, medo ou interesse? Estas podem ser razões a que podemos acrescentar mais mil. Os militares de carreira somavam as comissões de serviço. Com muitas benesses. E não aceito desmentidos daquilo que sei. Muitos sentiam-se em “trabalhos forçados”. E garanto-vos que não foi apenas António Lobo Antunes ou Manuel Alegre. Eram milhares. Porque tinham a Luz.

E os do outro lado, os tais "turras"? Não nos iludamos: nós somos todos iguais em iguais circunstâncias, basicamente. Passavam fome, sede, morriam quase sem assistência, apesar de tudo muitas vezes era preciso instilar o ódio em “injecções” para ele se manter. Porque já nessa altura o “bolo” estaria dividido. Mas o dono da confeitaria raramente vai ao forno.

E no resto de África, o que se passava? A Europa apercebia-se tarde de que tinha reunido debaixo da mesma casa famílias muito diferentes, mas nesse momento havia que aproveitar. Se havia divisão, vamos lá usar o nosso antigo ditado: “dividir para reinar”. Esta estratégia está em utilização até hoje. Mas por que havia a Europa de se intrometer? Bem, por hábito, por paternalismo, mas sobretudo por interesse: África, a Mãe-África, tinha riquezas que pareciam inesgotáveis. As antigas e milenares florestas tinham-se transformado em diamantes, as pedras em petróleo, e havia ainda o ouro e tantos outros minérios de que a Europa estava exaurida.
Deixem-me agora introduzir uma opinião muito pessoal: não compreendo a atracção, o valor, dado aos diamantes. São Pedras. Pedras frias, que se extraem dolorosamente do solo. E, no entanto, mata-se e morre-se por eles. São belos? Sim, mas podemos recriar a mesma beleza em vidro. Não entendo e nunca mais vou entender.
Interessava, pois, manter a “tribalidade” no pior sentido: acender o orgulho de algumas etnias, por um lado, mas aproveitar a “lealdade” forçada dos mais fracos. Daí as guerras internas, as fratricidas guerras civis, quanto mais longas melhor. Olhemos para o Quénia, para o eterno Darfur, para o reacender das lutas étnicas na África do Sul, nas limpezas metódics que estão a ser feitas aos emigrantes, por calendário e mapa.

É disto tudo que nasce a Fome, a Guerra, a Corrupção. A Corrupção é generalizada e está nas mais pequenas coisas. Em Angola há um eufemismo para ela: a “gasosa”. Pensam que eu estou de acordo com as diferenças abissais entre os níveis de vida em Angola? Pensam que eu não sei que estou a fazer, de graça, coisas que o governo deveria ter feito há muito, como uma obrigação social? Pensam que eu sou ingénua?
Nada isso. Eu voltei para África – Angola e Moçambique – para fazer a minha parte de reparação. Não quero dar dinheiro, não quero dar roupa, não quero dar comida, não quero dar palmadinhas nas costas. Tudo isso dura muito pouco. Quero dar-me! Quero dar conhecimento (partilhar é a palavra certa). Quero ensinar e aprender para ensinar. Quero provar que pedir, mendigar, é vender um pouco da dignidade de cada um. Quero ensinar Português e Matemática, porque o Saber é a maior arma contra a tirania, contra a ditadura.

Bob Geldof faz a parte dele. Eu faço a minha. Cada um à sua maneira. Mas às vezes falar é pouco. Ser paternalista é ofensivo. Aceitar é covardia. Fingir que está tudo bem é cegueira. “Trabalhar com” é a minha resposta. Que não é a única. África nunca vai vencer a batalha da Democracia enquanto lhe dermos dinheiro e conselhos. África precisa de verdadeiro Amor, Respeito, … e Tempo!
Ainda não acabei…

Hohe é dia do Ambiente se Amanhã também o for







No dia do Ambiente até os cardos dão flor...
Hoje é Dia do Ambiente e é dia de aniversário do Domingos Joaquim da Rocha Rodrigues. Parabéns, Domingos. Parabéns também porque tiveste a sorte de não ver a tua “Oliveira Martins” desaparecer do mapa escolar. A Oliveira Martins que era “a universidade dos guarda-livros”, onde as empresas os iam recrutar.

Hoje é Dia do Ambiente. E eu, que sou tão positiva, começo a descrer. Façam-me acreditar, por favor. Qualquer dia peço a colaboração de todos para fazer uma petição contra os “Dias de”. Para nos lembrarmos que todos os dias são Dias do Pai, da Mãe, da Criança, do Professor, do Ambiente, da Poupança, …

Todos os dias são Dias de Viver e não se pode viver a fatias, a talhadas, aos bocados. Por isso, quero avisar que, muito deslealmente, determino que ontem também foi Dia de tudo o que exprimi em cima e amanhã também.
Aliás, determino que Hoje é o dia de Ser Feliz, é o Dia dos Lindos, é o Dia dos Feios, é o Dia dos Doentes, é o Dia dos Sãos, é o dia dos Médicos, etc, etc, etc.

Só não é o Dia de ser Mau. E de ser Infeliz. Hoje é o Dia do Ambiente, sim. Mas façamos também amanhã tudo o que de bom hoje fizermos pelo Ambiente. Ele agradece já. Nós nos agradeceremos mais tarde. Amém.