Soldados, guerras, petróleo, diamantes...
Não falei da guerra. Nem dos “terrorristas”. Vou falar agora. Das guerras, dos terroristas.
Para as pessoas comuns, que não tinham sabido ler os sinais, a “guerra” começou a 4 de Fevereiro de 1961, no Zambizanga. Os dias que se seguiram foram de luto fechado e de uma grande incredibilidade. De algumas vinganças quase pessoais que me coíbo de relatar porque ainda me doem. Lembro o funeral dos polícias mortos e a campanha lançada num dos jornais de todos pormos luto. Os homens deveriam pôr um “fumo negro” na manga da camisa. Usem a imaginação para “verem” como teriam sido vistos aqueles que não puseram luto nenhum.
Da guerra, lembro a impaciência pela demora da chegada do primeiro contingente de soldados portugueses. Da obrigação de irmos assistir ao seu desfile na Marginal, sob um sol inclemente. De os militares serem vistos como “da família”. De um enorme sentimento de fraternidade. De um lado.
Do outro lado, lembro-me da diferença entre a noite e o dia: de dia, éramos os mesmos, de noite ouvia-se gritos, tiros, ameaças: “Vai para a tua terra! Quando te apanhar, vais me pagar tudo! Vou ficar com a tua mulher! Vou dormir com a tua filha! Vou dormir na tua cama!” E no outro dia, parecia que tinha sido apenas um sonho mau. Técnica de guerrilha, que se aprende na tropa.
Quando fomos viver para Malange, acompanhei muitas vezes o meu Marido, no jeep, pelas terras da Baixa de Cassange. Um dia o Raimundo gritou, íamos a caminho do Moma, (levávamos pescada do Cabo congelada para o chefe do Posto, lembro-me): “Chefe, olha um turra! Ali, na beira da estrada.”
Parámos. O “turra” era um infeliz que tinha sido deixado para trás, depois de levar um tiro que lhe entrara pelo alto da testa e saíra por detrás da orelha. Falava. Tinha uma matéria esbranquiçada na testa que o Raimundo, displicentemente, identificou: “Não tem problema. São miolos”. Um pouco mais à frente (talvez uns 100kms) desviámo-nos do caminho para deixar o “turra” num hospital. Onde foi recebido sem dramas nem vinganças. Perdemos-lhe o rasto daí a oito dias. Não havia telemóveis…
Os militares portugueses matavam, morriam, ficavam estropiados, sofriam, apaixonavam-se por África, ficavam, constituíam família ou regressavam com ela atravessada no peito, para o bem e para o mal. Alguns, mudavam de campo. Por consciência, medo ou interesse? Estas podem ser razões a que podemos acrescentar mais mil. Os militares de carreira somavam as comissões de serviço. Com muitas benesses. E não aceito desmentidos daquilo que sei. Muitos sentiam-se em “trabalhos forçados”. E garanto-vos que não foi apenas António Lobo Antunes ou Manuel Alegre. Eram milhares. Porque tinham a Luz.
E os do outro lado, os tais "turras"? Não nos iludamos: nós somos todos iguais em iguais circunstâncias, basicamente. Passavam fome, sede, morriam quase sem assistência, apesar de tudo muitas vezes era preciso instilar o ódio em “injecções” para ele se manter. Porque já nessa altura o “bolo” estaria dividido. Mas o dono da confeitaria raramente vai ao forno.
E no resto de África, o que se passava? A Europa apercebia-se tarde de que tinha reunido debaixo da mesma casa famílias muito diferentes, mas nesse momento havia que aproveitar. Se havia divisão, vamos lá usar o nosso antigo ditado: “dividir para reinar”. Esta estratégia está em utilização até hoje. Mas por que havia a Europa de se intrometer? Bem, por hábito, por paternalismo, mas sobretudo por interesse: África, a Mãe-África, tinha riquezas que pareciam inesgotáveis. As antigas e milenares florestas tinham-se transformado em diamantes, as pedras em petróleo, e havia ainda o ouro e tantos outros minérios de que a Europa estava exaurida.
Deixem-me agora introduzir uma opinião muito pessoal: não compreendo a atracção, o valor, dado aos diamantes. São Pedras. Pedras frias, que se extraem dolorosamente do solo. E, no entanto, mata-se e morre-se por eles. São belos? Sim, mas podemos recriar a mesma beleza em vidro. Não entendo e nunca mais vou entender.
Interessava, pois, manter a “tribalidade” no pior sentido: acender o orgulho de algumas etnias, por um lado, mas aproveitar a “lealdade” forçada dos mais fracos. Daí as guerras internas, as fratricidas guerras civis, quanto mais longas melhor. Olhemos para o Quénia, para o eterno Darfur, para o reacender das lutas étnicas na África do Sul, nas limpezas metódics que estão a ser feitas aos emigrantes, por calendário e mapa.
É disto tudo que nasce a Fome, a Guerra, a Corrupção. A Corrupção é generalizada e está nas mais pequenas coisas. Em Angola há um eufemismo para ela: a “gasosa”. Pensam que eu estou de acordo com as diferenças abissais entre os níveis de vida em Angola? Pensam que eu não sei que estou a fazer, de graça, coisas que o governo deveria ter feito há muito, como uma obrigação social? Pensam que eu sou ingénua?
Nada isso. Eu voltei para África – Angola e Moçambique – para fazer a minha parte de reparação. Não quero dar dinheiro, não quero dar roupa, não quero dar comida, não quero dar palmadinhas nas costas. Tudo isso dura muito pouco. Quero dar-me! Quero dar conhecimento (partilhar é a palavra certa). Quero ensinar e aprender para ensinar. Quero provar que pedir, mendigar, é vender um pouco da dignidade de cada um. Quero ensinar Português e Matemática, porque o Saber é a maior arma contra a tirania, contra a ditadura.
Bob Geldof faz a parte dele. Eu faço a minha. Cada um à sua maneira. Mas às vezes falar é pouco. Ser paternalista é ofensivo. Aceitar é covardia. Fingir que está tudo bem é cegueira. “Trabalhar com” é a minha resposta. Que não é a única. África nunca vai vencer a batalha da Democracia enquanto lhe dermos dinheiro e conselhos. África precisa de verdadeiro Amor, Respeito, … e Tempo!
Ainda não acabei…
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7 comentários:
Nao quero deixar nenhum comentário, só quero dizer: li tudo com muita atencao. Sei tao pouco sobre essa guerra. O que me admira é que a Carmo em 1961 ainda era muito nova.
Bob Geldof, eu nao. Pessoas como a Carmo sao-me muito mais simpáticas.
Ele faz sempre tudo com muito "show"!!!
Nao queria dar comentário ...
Admiro-a muitíssimo.
:):):)
Aguardo pela continuação. Por um 'livro' conjugado no singular.
Claro que estou a seguir com toda a atencao o seu ponto de vista sobre os problemas africanos.
Só com a mágoa de eu nao ser uma Mulher como a Carmo, e só me ocupar com o Mel Ferrer e outras coisas no género.
Eu também sempre adorei a Audrey Hepburn e vi todos os filmes dela.
Que bom que descobriu o meu blogue secreto, em breve já deixa de o ser. Um americano de Detroit também se perdeu nele.
NAo calcula como eu gosto de receber notícias suas-
:):):) aprendi com a Fátima
Boa noite avó!
Só vim deixar o que me pediu,existem coisas que não são o que parecem(não consigo desta forma dizer mais nada).
Preciso de uma LUZ,BEM GRANDE!!!
É:
htt://allineedtoleavebehind.blogspot.com
FIX ME
Beijinhos
Deus tem que me ajudar,para ver a luz no fundo do túnel.
Fique bem e com Deus!
Precisava de falar um dialecto qualquer...entende
Precisei de ir à lua e voltar.
Bob Geldof? Eu sim. Chama mais a atenção para o problema do que milhões de pessoas todas juntas. E vai ao terreno também. Amo ele. Podia estar no bem bom, sem se chatear nem um pingo, mas não fez essa opção.
Maria do Carmo? Eu sim. Está no terreno. E no terreno todos são poucos para ajudar.
Todos são poucos para mostrarem ao mundo a obscenidade.
ó nhávó cagente fica munte cuntentes da sua vizita e atão ca já tá bôazinha? iste da cunha tém bárbas e cagóra tá mêmo munte pióre. atão comé isse ca na tém moédas? é só nóta qué tude gênte ríca?
ái do dia da cunha queu áxo muntíçimo bém é só marcáre a dáta...
a nha maria e máis eu gustames de vêre a nuvéla camodos ca dêitamos ás 10 óras e mêia cagente alevanta-ce cêdo pa tratáre da criação. ólhe ca centímos com trenura o seu abrace e reteríbuímos a dubráre e tamém uma pétala de rósa pá nóssa avó pirueta
Que meus olhos vejam o dia do ressurgimento desse país e desse continente. Para bem de todos.
E Carmo, está a conseguir colar-nos ao seu blogue com estas partilhas de vida, sofrimento, amor, fé, história...
Eu agradeço.
Carpe diem tribal!
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