quarta-feira, 23 de julho de 2008

Para que servem os livros?

Em tempos que já lá vão pedi ao escritor e poeta Manuel António Pina que fosse à "minha" Filipa falar com alunos e professores, na inauguração da nossa nova biblioteca, sobre livros. Foi no dia 23 de Abril de 2002. Sem lhe pedir autorização, passo a transcrever o que ele disse e que hoje pode ser visto emoldurado na dita biblioteca. Esta escolha faz parte da minha terapia de cura...

PARA QUE SERVEM OS LIVROS?

Há muitos anos, num infeliz livro de Joaquim Namorado, li um aflitivo poema intitulado “Viagem aos Mares do Sul”, cuja estrita prosa dizia qualquer coisa do género “Eu não fui lá”. Quem, como eu, tivesse andado por aqueles mares todos com Salgari, e Stevenson, e Somerset Maugham, e também com Gauguin, e por esses mares e pelos outros com Conrad e com Fernão Mendes Pinto, e tivesse viajado por África com Roussel, ido à Lua com Júlio Verne e com Cirano de Bergerac, e a Vénus e a Nova Iorque com Ray Bradbury, e aos pólos com Jack London, ou tivesse andado atrás do ouro do Alasca com Charlot, e do ouro californiano com Blaise Cendrars, e tivesse vivido todo o género possível de aventuras, na China, no Tibete, nos Andes, nas Arábias, e um pouco por todo o lado, com Tintin, e tivesse combatido em Tróia com Aquiles e Agamémnon, descido aos Infernos com Ulisses, e iludido Circe, e vencido os pretendentes, durante horas tiradas ao sono e às sebentas, ou com Rilke, com Elliot, com Pessoa, tivesse andado perdido pelos obscuros territórios da alma e dos sentidos, haveria de ter tido, como eu, uma pena imensa da incapacidade do poeta para sair de casa.

Para isso servem também os livros, para sair de casa. E a pintura, o cinema, a música. E para regressar, quando os olhos e o coração se cansam, a casa.

Borges imaginou o mundo como babilónica biblioteca; os cabalistas imaginaram-no como um imenso livro por ler. E Rilke evoca, julgo que no “Livro das Horas”, as vastas mãos de Deus que folheiam o Livro do Princípio, que é o Livro do Mundo porque, como ensina Thomas Brown, a arte é a natureza do homem e a natureza é a arte (e a literatura) de Deus.

Tudo está eternamente escrito. E eternamente, e cesarinymente, em Quito. Isto é, em qualquer sítio da estante. O leitor é um Deus fugaz, e o escritor é provavelmente um leitor lendo por escrito. Não há Mares do Sul, não há Lua, não há alma, fora dos livros e de nenhuma outra forma é possível ir seja onde for levando-nos a nós próprios. Eu é que sei, que já me aconteceu, uma vez ou outra, e por dever de ofício, estar nos Alascas sem Jack London, e em Verona sem Shakespeare, e voar sobre o Pólo Norte sem Júlio Verne, e andar por Tóquio e por Kyoto sem Bashô, e por Macau sem Camilo Pestana, e pelo Nordeste sem João Cabral e sem João Guimarães Rosa, e por Lisboa sem Cesário, e por dentro e por fora de mim próprio sem Pessoa e sem Santa Teresa de Ávila; eu é que sei, que não há outra forma de ir, nem de estar, seja onde for. Escrever livros, e ler livros, ou cantar, ou pintar, é a única forma de sair de casa. De viver, como está escrito no Livro do Tao.


9 comentários:

Pedrita disse...

eu fiquei chocada de ouvir uma declaração de uma pessoa que ler enlouquece. e: ler pra quê? - assustador! no brasil há um culto a desinformação. sempre aparece alguém pra ridicularizar alguém que resolve enaltecer a informação. muito triste! as pessoas têm orgulho de dizer que não lêem. que não gostam de teatro. como se fosse algo para elas se orgulharem. muito triste 2! adorei o texto para que servem os livros. acho que viajar sem sair de casa é uma das grandes maravilhas dos livros! e podermos imaginar nossos personagens como queremos. amo cinema, mas lá o personagem está pronto, tem rosto, jeito. no livro somos nós que criamos visualmente os universos que desvendamos e não há nada mais mágico. beijos, pedrita

Raul Martins disse...

Só hoje percebi a Tua "doença súbita" ao ler poste mais abaixo e fico feliz pelo facto da Eliana Ribeiro te ter confortado.
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Obrigado pela partilha deste texto do António Pina. Interessante ponto de partida para falar com os miúdos sobre o amor aos livros. E que rol de autores! É pena que outras solicitações, e não são poucas, não deixem as nossas CRIANÇAS e JOVENS embarcar em viagens com eles. Sinais dos tempos!
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Um texto a ser emoldurado em todas as escolas.
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Carpe diem!

Os Incansáveis disse...

Ler é maravilhoso! Lembro-me na minha adolescência de devorar os livros da Agatha Christie. Aqueles mistérios me encantavam. Ler é conhecer outros povos, outras pessoas, é chorar com os personagens, é rir sozinha no metrô, é ficar com raiva dos desfechos inesperados. E, indo na direção do debate que vocês tiveram a respeito de ver um filme primeiro ou ler o livro, acho que prefiro ler o livro primeiro. O filme é a visão do roteirista e do diretor sobre o livro, que, não necessariamente, concorda com a sua. Para mim, ver o filme primeiro tiraria o encanto e as surpresas da leitura.
(Ah! Lembrei-me de você ontem: fui a uma loja que vende mate gelado com frutas ou todo tipo de acompanhamentos e veja o que encontrei: Mate Pirueta!!! :)))) É o mate gelado com catuaba, guaraná e marapuama, todas plantas medicinais conhecidas por suas propriedades energéticas e afrodisíacas).
Beijocas
Denise

Carlos Faria disse...

Adorei o post, tenho a casa cheia de companheiros que me falam sempre que estou só, que me ensinam coisas que nem sonhava existir, que me pintam quadros sem tela, que nunca se saturam de mim, que se silenciam quando estou cansado e que estão sempre ao meu dispor nas prateleiras da minha biblioteca, vários deles mesmo sem nunca terem falado comigo

renard disse...

Ouma:

Eu sei é para que não servem os livros:
Para por debaixo duma cadeira que tem uma perna mais curta;
Para usar como combustível duma fogueira;
Para razão de guerras entre países e religiões;
Para limpar o traseiro! Porque como dizia o meu avô, esse olho é cego e por mais que insistam não vai aprender a ler!
Desculpe a escatologia mas não me contive... LOL
Espero que não leve a mal... :)

Kisses Ouma

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

Avocita: Fico impressionado da forma como as palavras lhe escorrem pelos dedos fora...
Leio e fico deslumbrado! Mas vim aqui dizer q não esperaremos por Setembro: a caixa de frutas já lá está (no sitio do costume)à espera de quem a colha!
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PS: menino e moço deambulei pelo Covelo. Ainda havia "Ripal" e um tipo afamado estacionava um carro lindíssmo azul cobalto, na esquina com o Bolama. Era o Mabìlio. O Dr. Mabílio de Albuquerque.

Anabela Magalhães disse...

Gostei de ler esta reflexão sobre os livros que nos transportam para outras paragens, outras dimensões.
beijinhos

Grifo disse...

Ler, cultura, fantasia, imaginação, são tudo palavras que estão ligadas. O leitor escreve o livro, o leitor imagina. A leitura é algo que está a faltar muito a muitos jovens (será colegas) de hoje.

Adorei o seu blog, e todas as palavras que se encontram nas suas etiquetas.

Sou um jovem mini escritor. Espero que passe por o meu blog e goste do que vê. ;-)

Jorge Bastos Malheiro disse...

Olá, Carminho!

Só hoje voltei ao teu blogue para ler o que escreveste nestes últimos dias. E acho que fiz mal em não ter vindo aqui há mais tempo (e com mais disposição, confesso) porque me dava vontade de acrescentar mais uns comentários a alguns pontos que afloraste. Mas neste momento seria como comida requentada.

Quanto aos livros, como sabes, também sou um viciado na leitura, e, já agora, em complemento da D. Teresa, aconselhar-te-ia a leres a D. Urraca (a tia avó de D. Afonso Henriques e não a irmã de D. Teresa) da Amália Gomez. Aprendi umas coisitas no livro, mas não te digo o quê.

Um xi do

Giorgio