quarta-feira, 4 de junho de 2008

Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corrupção... Parte 3

Conferência de Berlim, paternalismo europeu, cegueira nacional (sub-título)


Ficámos em 1974-75. Houve a onda do retorno, incluindo muitíssimos que não retornavam a lugar nenhum porque já eram africanos, não europeus. Por muita trágico que tivesse sido, ainda aqui hei-de escrever e provar que esse retorno foi uma extraordinária oportunidade perdida. Mais uma do nosso rosário de desperdícios. Houve a descolonização “exemplar”. Exemplar? Sem comentários. Os portugueses fugiram de África com medo do que tinham visto acontecer após as outras independências. Os portugueses fugiram de África porque pressentiam o vulcão da guerra civil prestes a entrar em erupção. Porque, apesar de 99% não o ter aprendido na Escola, todos adivinhavam o que poderia advir de o facto de os novos estados terem sido criados a régua e esquadro na Conferência de Berlim.
Por dentro desses estados estavam nações, povos que competiam entre si há milénios, com uma base cultural única mas milhares de variantes sobre o mesmo tema. Os estados africanos foram criados por quem não conhecia África, não a respeitava, não a via como importante. Quando me lembro de que o Ex-Congo Belga era uma propriedade particular do Rei Leopoldo fico incomodada.
Os portugueses saíram e deixaram os povos no mato sem cachorro (para amenizar) … Sem quadros, sem classe média, sem escolas, sem auto-estima. Ou antes, existia algo de tudo isto mas em quantidade muito reduzida. Porque ninguém dá o que não tem senão conselhos. E cada um com muita vontade de, finalmente, poder mandar. Ah, o gosto do poder!


É claro que mantenho tudo o que disse sobre a minha infância. E a do Raul. E a do Ernesto Lara Filho. E tantos outros como nós, uns mais abonados economicamente, outros mais pobres. Mas chegava aquele momento em que nos separávamos. Muitas vezes sem saber porquê. (Estou a ouvir, na minha cabeça, a Maria Bethânia a cantar aquela despedida do menino da roça que vai para a saudade e pensa nunca mais esquecer o seu amiguinho de infância).
Não havia racismo? Havia, sim, em toda a África e de todas as cores. Havia e há. E se entre nós não havia apartheid, se as escolas estavam abertas a todos, não é menos verdade que se um negro queria estudar, as questões, ainda que não expressas, estavam lá, escritas em letras grandes: “Vai estudar para quê? Qual a intenção? Pretende ser o quê?”
E depois, mesmo com muita vontade, mesmo a saber, como eu sabia, que a nossa salvação estava na Escola, quem ficaria a tomar conta dos irmãos? E dos mais velhos? E acarretar a água? E depois ir trabalhar de criado, de lavadeira, de cozinheiro, para a D. Cacilda e aumentar e melhorar o pão-nosso de cada dia? Como arranjar dinheiro para o alambamento, para a bicicleta? Para mais umas chapas de zinco novas?


Vou intercalar aqui um episódio que talvez ajude a explicar melhor algumas coisas: tinha eu os meus 11 anos e andava quase há dois a “implorar” ao meu Pai que me deixasse estudar.

Entretanto, adoeci, com o que se chamava, eufemisticamente, “uma fraqueza geral”. Pudera, era um pingo de gente, trabalhava mais de 10 horas por dia e ajudava a criar um irmão caçula. Para ver se me calavam e se eu descansava um pouco, fui passar duas semanas à Roça S. Luzia, no Úcua, a casa de um casal conhecido dos meus pais. De noite, fugia daquele grupo de velhos e ia para a sanzala, o quimbo, sentar-me com as pessoas debaixo do embondeiro grande, a ouvir o soba, enquanto uma fogueira afugentava os mosquitos.
Na segunda noite o soba olhou para mim e disse o seguinte: “Olha só, aquela menina está aqui com a gente, mas um dia vai aparecer aqui um meu irmão que vai dizer:” Vai para a tua terra!” Mas a terra dela é aqui, como pode ir para a terra dela? Depois, eu vou perguntar: “Quem te disse que tu podes mandar?” E ele vai-me responder que manda porque ele é filho do leão e o leão manda em todos. E nessa altura eu vou responder e dizer que não senhor, quem manda sou eu, porque sou filho do jacaré e quando o leão vai beber água, o jacaré pode dar uma patada com o rabo e matar o leão.
Mas então, vai aparecer outro meu irmão que diz que quem manda é ele, que é filho de cobra surucucu, que mata tudo o que ela quer só com a picada do rabo dela. Mas ainda não sabemos quem vai mandar mesmo, porque depois vão aparecer uns poucos de meus irmãos, vão-nos rodear, e vão dizer:” Quem manda somos nós, que somos filhos dos mabecos. Nós somos pequeninos, mas andamos todos juntos, e ficamos ali parados debaixo da árvore onde tu te escondeste e vamos esperar até tu caíres. Porque nós nunca nos cansamos de esperar.”


Fico por aqui, por hoje. Mas a procissão ainda vai no adro…

4 comentários:

CCz disse...

Continuo a saborear.
.
A sério.

Raul Martins disse...

Retorno? Uma oportunidade perdida? Sem dúvida!
Quantas pessoas poderão testemunhar isso? Eu conheço algumas.
Em mim a "mossa" não foi muita. Mas para muita gente foi.
E Carmo, cada parágrafo deste texto merece ser bem reflectido. Muita história e muitas questões sociais (e políticas) aqui são trazidas à reflexão.
Obrigado Carmo por estas partilhas que nos ajudam a compreender uma realidade que ainda teremos muito que estudar. E estas achegas são importantes.
Carpe diem!

Anabela Magalhães disse...

Tudo o que escreves foi falado nas minhas aulas de História. Não deixo passar em falso a malfadada Conferência de Berlim em que os europeus fatiaram África como quem reparte um bolo sem um pingo de respeito por povos, etnias, religiões, línguas, culturas...
Uma vergonha cujas consequências são ainda muito visíveis nas lutas e nos problemas que eclodem aqui e ali.
Quanto ao racismo... sim, não tão óbvio como noutros lados, mas obviamente presente.
Lamentável. Tão ou ainda mais lamentável, nem sei bem!
Sigo cada vez com mais interesse o teu testemunho porque é o testemunho de quem viveu por dentro estas situações.
É um texto muito crítico, muito lúcido. Aprecio isso.
Bjs

JMA disse...

E promete! Uma visão por dentro da história.