terça-feira, 3 de junho de 2008

Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corupção... Parte 1




À esquerda, doces de ginguba;
à direita, tamarindos na árvore
Vim viver para Angola com pouco mais de cinco meses. Cá cresci e me fiz mulher, constituí família e, em Dezembro de 1965, com um filho de 18 meses e outro de 5, o meu Marido e eu fizemo-nos ao mar para irmos atrás de um sonho: para eu tirar um curso superior, já que me era impossível fazê-lo cá. Vivíamos em Malange, ele era técnico superior do Instituto de Algodão de Angola, passava a semana pelas lonjuras da baixa de Cassange, tornava-se notado porque levava o ajudante sentado ao lado dele, no jeep. O Raimundo, mestiço, que dizia que era “branco de Macau”… Eu dava aulas, com o antigo 7º ano (tinha sido, durante três anos seguidos, “a melhor aluna da Província de Angola”, tenho os documentos, posso prová-lo) na Escola Industrial e Comercial de Malange. Os alunos chamaram-me, contra todos os meus pedidos, durante dois anos, “sôtora”. Pensámos que o melhor era fazer-lhes a vontade…
A nossa primeira intenção era voltar para Angola, África estava-me no sangue e sentia que havia muitas coisas que podíamos fazer. Como já as fazíamos antes. Mas queria vir completamente habilitada, com o Curso de Ciências Pedagógicas, com o estágio, e entretanto a Joana nasceu. Em 1973. Quando iniciei o estágio ela tinha 2 meses. E depois foi a revolução, a descolonização, a debandada. Mas África continuava no meu sangue, embora cada vez mais longínqua em termos espaciais. Para sobreviver, derrubei as pontes de retorno e chorei amargamente pelo meu povo. O meu povo era a Fátima, o Jumbo, a Rute, o Raimundo, a Mãe Jejuína, a Velha Mabunda, o Benjamim, a Vitória. Os negros com quem vivi lado a lado até casar. Foi a Vitória que me ensinou a fazer croché, foi a Velha Mabunda que me explicou a puberdade, foi a Fátima que partilhou sempre comigo as maçãs da India e os doces de ginguba. Eu “roubava” vales de água para ela dar à Mãe, viviam mesmo atrás do muro do nosso quintal, tínhamos uma mulembeira no canto e um tamarindeiro de que ambas éramos donas.
Para me compreender, é preciso que se saiba que vivi nos locais mais pobres e problemáticos de Luanda: primeiro, com os meus Pais numa xitaca (pequena quinta, que o meu pai cultivava por conta de um cunhado) depois no Marçal, com um tio solteirão, aos cuidados de uma lavadeira, numa casa só, só de homens, para poder frequentar a escola na Missão de S. Paulo. Entre os sete e os dez, no musseque mais difícil de todos, ainda hoje o é, o Sambizanga. Voltei ao Marçal até aos 20. Casei, fomos para Malange e lá ficámos até voltarmos a Portugal.
Como era a minha Angola? O possessivo significa que não tenho a pretensão da verdade, apenas. A minha Angola era grande nos seus espaços, criava-se nela uma noção de relatividade de tempo e de espaço como em mais lado nenhum senti. A maior parte dos portugueses eram muito incultos, analfabetos, sem profissão definida. Ninguém dá o que não tem. Havia uma elite, cultural sim, mas muitas vezes só financeira, e muito pequena. E essa procurava recriar a metrópole.
Lembro-me de ver a transformação das colonas: chegavam com o cabelo apanhado, de saia e blusa acanhadas, claras, com medo. Porque diziam que os negros lhes pareciam todos iguais, não eram capazes de os distinguir uns dos outros. Daí a um mês tinham um criado negro, para ir com elas às compras, ao Mercado de Quinaxixe, que também foi da Maria da Fonte. Ele trazia a cesta, ela que sempre tinha sido a Ti Cacilda, era promovida a D. Cacilda pela vendedeira da praça que lhe perguntava, a ver cara nova: “Qual é a sua graça?”
Estava na hora de cortar o cabelo, fazer uma permanente, arranjar uma lavadeira e às vezes até um cozinheiro. Se a ignorância não fosse amaciada por um coração, especialmente se ela fosse analfabeta, o que tinha ela que considerasse um bem precioso, que a pusesse acima dos seus "moleques"? A cor da pele.
O que tem isto a ver com Bob Geldof, África, Corrupção, Fome, Pobreza?
A Fátima André, subtilmente, alertou-me para o perigo dos postes grandes… Esta é a introdução apenas. Esperem pela minha pancada…
Se eu me pudesse mover, estas duas fotos teriam sido tiradas por mim. Assim, fui "roubá-las" a Carlos Pires, Sabores de Benguela. Com gratidão por ter retratado tudo tão bem. As gagajas estão de apetite... Que saudades!

3 comentários:

Anabela Magalhães disse...

Espero ansiosa. Estou a amar. Adoro estas memórias de quem tem uma vida tão cheia que transborda. Obrigada.
Bjs

Fátima André disse...

Que histórias de vida deliciosas... de causar uma pontinha de inveja :)

CCz disse...

Estou a saborear.
.
De verdade.