quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O Natal do Menino Negro

A propósito da reflexão do Natal, inseri um excerto de um poema que ainda hoje não consigo recordar sem um nó na garganta. Como o Raul parece ter ficado com curiosidade, aproveito para contar a história. Li-a há muitos anos, seguramente há mais de 50, pois sei que ainda era uma garota. Li-a numa edição de Natal do Diário de Luanda ou da Província de Angola, dois jornais importantes à época. Na minha ingenuidade, não guardei nem jornal nem autor. Mas impressionou-me tanto que guardei de memória a parte final do poema.
Contava o poema que uma lavadeira negra levava o seu menino quando ia levar e buscar a roupa dos patrões para quem trabalhava. Na casa havia um garoto da idade do seu, ainda naquela idade inocente sem preconceitos nem barreiras. O menino branco andava afadigado a limpar os sapatos e confidenciou ao menino negro, que se tinha admirado com a sua azáfama, que tinha que limpar bem os sapatos para o Menino Jesus (naquele tempo não havia Pai Natal...) lhe pôr os presentes na noite de Natal. Naquela noite, afinal. Suspirando, o menino negro respondeu que não sabia de nada e, pior ainda, não tinha sapatos para receber os presentes. Solidário, o menino branco foi ao quarto, pegou nuns sapatos mais usados e, depois de pedir autorização à mãe, ofereceu-os ao menino negro.
Este foi todo o caminho para casa a saltitar à volta da mãe, que com os seus problemas e o carrego à cabeça, mal lhe prestava atenção, enquanto ele sonhava com o que havia de pedir a esse Menino Jesus de que tinha acabado de ouvir falar e sobre assunto tão importante: Ele trazia brinquedos às crianças!.
À noite, após o jantar do costume, quando se deitaram na esteira grande, o menino negro não se esqueceu de pôr os sapatos perto da fogueira quase apagada que servia de iluminação na cubata pobre. No dia seguinte, mal acordou lembrou-se imediatamente dos sapatos e muito cheio de esperanças saltou do seu leito. de presentes nem rasto e os sapatos jaziam esturricados no meio das cinzas da fogueira: uma cabra que pertencia aos parcos haveres da família também dormia debaixo de tecto e não tinha resistido a tentar roê-los, acabando por os empurrar para o lume.
Triste mas ainda levemente esperançoso de que se tivesse enganado no dia, esperava certificar-se do engano quando visse que o seu amigo branco também não tinha recebido presentes. Mas a bicicleta sonhada, uma camisa e umas calças, um jogo e um livro eram a prova de que tinha sido mesmo Natal. Triste mas conformado, contou então:
"Menino Jesus não foi no meu cubata
ou com medo que a gente comesse Ele
ou receio talvez que minha pai lhe bata.
Branco é rico, vive felizmente
Mas preto ser mais pobre que ninguém:
está tão coitadinho, tão marmente
que nem um Menino Jesus para ele tem".

Já agora, "marmente" é "malmente", um advérvio de modo que o menino construiu de acordo com a norma.
Durante muitos anos senti este nó pelos meninos negros. Depois, aprendi Latim e o que significa "mutatis mutandis". E comecei a ver muitos meninos que não eram escurinhos (um eufemismo de má consciência...) e que também não tinham Menino Jesus. Nunca.
Com as palavras da única estrofe que guardei pus, penso eu, muitos dos meus meninos-alunos (sempre com mais de 14-15 anos) a pensar. De olhos brilhantes. Muito brilhantes. E que depois traziam de casa brinquedos e roupas para outros. Nunca velhos os brinquedos, nunca rotas ou enxovalhadas as roupas. Que Professora feliz eu fui, graças a Deus!
Então Raul, gostas desta história de um Natal da tua terra? Espero que sim.


1 comentário:

Raul Martins disse...

Obrigado pela partilha Carmo. Claro que gostei. Uma história de Natal que irei ler à Pipoca e ao Jota e aos meus meninos do CIC.
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Infelizmente há e continuará a haver meninos de todos os continentes que também não têm o menino Jeus. Infelizmente.
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Beijinhos de todos nós.