Muitos de entre aqueles que enchem a minha Caixinha de Afectos têm lido, sorrido, comentado, Rubem Alves. Um senhor por quem fiquei de amores desde que o conheci... Ora ontem à noite, ao correr de uma pequena pesquisa na net aparece-me um texto a comentar "Gaiolas e asas". Lembram-se? As Escolas devem dar asas e não aprisionar. Ora, apear do meu Amor sem remédio, não contesto que Rubem Alves se permite hoje dizer muitas coisas com que só sonhou. E faz ele muito bem! Mas também não nos faz mal nenhum ler e confrontar opiniões. Por isso, aqui deixo o tal comentário, já com quase 7 anos:
Das crianças e dos pássaros
José Nivaldo Cordeiro, 5 de dezembro de 2001
Há algo em comum entre as crianças e os pássaros, mais precisamente entre crianças em idade escolar e os pássaros aprendendo a voar? Parece haver um paralelo bem cruel: as crianças que não conseguem aprender algo para a vida, hoje em dia confundido esse algo com o escolaridade formal, fracassam e podem morrer, assim como os pássaros, ao fazerem seu primeiro vôo, fazem a sua prova de fogo, a diferença entre sobreviver e morrer jovem. Quem, como eu, costuma ver os programas do Canal Discovery, que mostra a vida selvagem, e também ler revistas de divulgação científica sobre o assunto, sabe que a taxa de mortalidade de jovens pássaros é elevada nesse instante capital da sua existência.
Há ainda uma metáfora implícita na comparação: a aquisição de conhecimento como a aquisição de asas para os grandes e pequenos vôos da existência. De fato, aqueles que não têm a luz do saber estão condenados à uma vida rasteira, terrestre, não apenas do ponto de vista material, mas sobretudo do ponto de vista espiritual. É uma metáfora apropriada.
O artigo que o educador, psicanalista, escritor e professor emérito da Unicamp, Rubem Alves, publicou hoje na página três da Folha de São Paulo usa a metáfora de modo absolutamente inapropriado e diria mesmo equivocado. O título do artigo é "Gaiolas e asas". O tema me atraiu a atenção, pois creio que um dos problemas centrais dos tempos modernos está ligado precisamente à formação da juventude, pois os núcleos tradicionais de formação, especialmente na sua parte moral - a família e as igrejas - estão perdendo espaço para concorrentes que não podem substituí-los, basicamente os meios de comunicação - com destaque para a televisão - e as escolas. Às famílias caberia sobretudo encarregar-se da solidez moral da criança e do adolescente, mas a instabilidade muito freqüente do núcleo familiar, e a ausência prolongada dos pais a trabalhar, têm deixado as crianças aos cuidados das comunicações eletrônicas e das escolas. As crianças ficam, por assim dizer, órfãs de seus principais educadores.
Ruben Alves diz que lhe ocorreu um aforismo: "Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas". Até aí, um dito espirituoso que, visto mais de perto, não significa muita coisa. Diz mais: "Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de segundo grau, em escolas de periferia. O que elas contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças... E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina que sejam feitas, como dar programas, fazer... avaliações. Ouvindo os seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra - e as domadoras com os seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a forças dos tigres".
O que o educador, psicanalista e professor quis nos dizer com isso? Que os pobres passarinhos, por culpa da burocracia, que exige a aplicação de programas e critérios de avaliação de desempenhos, por fazer isso, são transformados em tigre ferozes e indomáveis.
Ele está completamente equivocado. E não é apenas na periferia que vemos esse tipo de fenômeno. Eu mesmo tinha filhos em escola privada de renome, situada da Vila Nova Conceição, em São Paulo, na qual o mesmo fenômeno ocorria. Os relatos que ouvia eram de horror, de atos cometidos pelos herdeiros das mais finas famílias da cidade de São Paulo. Então investiguei o problema e concluí que a origem do mesmo estava no uso de métodos pedagógicos errados, licenciosos, que premiam a desobediência e a falta de educação dos alunos, que reduzem a autoridade dos mestre a nada, que adulam adolescente em fase de formação como se eles soubessem já de alguma coisa. Coloquei os meus garotos em escola mais rigorosa - nominalmente o Colégio Bandeirantes, em São Paulo, e o problema acabou, pois ali se exige disciplina e desempenho acadêmico e aqueles que não estão interessados em estudar são convidados a procurar outra instituição de ensino. Resolvi o problema dos meus filhos, mas não o da educação em geral, obviamente. Mas ficou a experiência.
Então posso dizer que o raciocínio do ilustre educador contem dois erros em sua gênese: a de que o problema está nas escolas da periferia da cidade e que os culpados pelos pássaros serem transformados em tigres sejam as exigências formais de programa e avaliação. Penso que é o contrário: onde essas exigência foram atenuadas e abolidas a desordem foi instalada e o respeito devido pelos alunos aos mestres desapareceu, levando com ele o sentimento de hierarquia entre alunado e o professor, essencial para que haja ordem na sala de aulas. O respeito devido ao mestre é na verdade o respeito ao Saber.
Aí o ilustre professor incorre em um terceiro erro, ao fazer a seguinte afirmação: "Violento, o pássaro que luta contra o arame da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os adolescentes de periferia? Ou serão as escolas que são violentas? As escolas serão gaiolas?"
Obviamente que ele não percebeu a inversão da própria afirmação inicial: que os adolescentes são violentos como tigres. Agora as escolas é que são violentas porque supostamente prendem os aluno? Está correto isso? É claro que não, a começar pelo fato de que ninguém, se não quiser, precisa ir à escola, por mais que o Estado e suas leis e mesmo os pais digam o contrário. Inúmeros jovens simplesmente não vão à escola porque se recusam a ir e ninguém tem o poder de demovê-los. Os que vão é porque querem. Então, por princípio, a escola não aprisiona ninguém. Não obstante, o comportamento desses jovens torna-se, na sala de aula, selvagem. E por que? O ilustre professor não responde, mas continua a sua argumentação sofística:
"Mas eu pergunto: nossas escolas estão dando uma boa educação? O que é uma boa educação?" E tenta responder: "O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos ganham uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações, acrescidos de novos exames elaborados pelo Ministério da Educação... Mas será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação?"
Ora, o nosso psicanalista não percebeu que entrou aqui com uma pergunta que ficou sem resposta e respondeu a uma pergunta que não foi formulada, ficando escondido o lapso de raciocínio. Comportamentos civilizados na sala de aulas (ou a sua falta) nada têm a ver com conteúdo programático de coisa nenhuma e muito menos ainda com critérios de avaliação. Têm a ver com a formação moral dada (ou deixada de dar) pelo país, pelas igrejas, pelos meios de comunicação, pelas escolas, pela postura reta (ou pusilânime) dos mestres, pelos instrumentos pedagógicos utilizados. Um coisa é o que se dá como conteúdo - e é de se esperar uma harmonia do conteúdo programático das disciplinas pelo País afora - legítimo papel a ser desempenhado pelo Estado. Outra coisa é a educação essencial que prepara o jovem para o ato de aprender - os bons modos. Uma coisa é o que deve ser (ou não) dado, outra a predisposição dos jovens para receber o que se lhes oferece.
Na verdade, o nosso professor emérito deixa de reconhecer que a nossa sociedade tem crescentemente desvalorizado os mais velhos e valorizado os mais jovens, os filhos valem mais que os pais (há algo mais emblemático do que a Bolsa-escola, que remunera o moleque e não o pai, que é responsável e frequentemtemente não encontra os meios para exercer a responsabilidade como desejaria? Por que não Bolsa-pai ou Bolsa-mãe, que manteria a hierarquia geracional e a dignidade dos progenitores? Dá para imaginar alguns bolsistas a dizerem: "se tentar me enquadrar, não vou à escola e aí então não tem bolsa", numa completa inversão de valores). Que o problema está na quebra da hierarquia entre os que sabem e os que não sabem. Que essa revolução cultural é o princípio de toda a confusão escolar, a começar pela falta de disciplina que descamba para comportamentos grupais violentos e incontroláveis. A burocracia e o Estado não têm culpa nisso; as crenças pseudopedagógicas, sim, pois estão na raiz da quebra da necessária hierarquia.
Depois, para fechar com chave de ouro o artigo, cita Nietzsche, afirmando que "O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida". Será? A vida na verdade é a síntese entre corpo e alma e o corpo morto é ainda um corpo, logo a proposição dele - e a de Nietzsche, e aqui me refiro explicitamente ao Zaratustra, no discurso "Dos Desprezadores do Corpo" - está errada. Nietzsche tem uma exposição confusa das suas idéias, que podem apoiar muitas outras idéias confusas, mas a sua obra, vista em conjunto, tem um sentido e pode ser interpretada e compreendida para além das confusões das partes isoladas. E se há alguém que experimentou com toda a intensidade as experiência da alma, foi Nietzsche, cujo corpo foi um exemplo acabado de fraqueza. Mas isso já é uma outra história, a merecer ela própria um artigo.
O que o ilustre educador quer afirmar é que a inteligência é ferramenta e brinquedo do corpo. Ora, isso não é possível. Nós não somos robôs, como no AI do Spillberg. Aliás, os robôs desse roteiro do Kubrick adquirem alma e seus corpos não são mais senhores de nada, o que vale é o coração (metafórico, claro, significando o Amor) e a compreensão, em resumo, a alma. Ela, sim, é o sujeito, o que nos torna semelhantes a Deus, o que nos dá o discernimento, o livre arbítrio, a capacidade para compreensão, única na criação, a tornar-nos, a nós próprios, criadores. O corpo, a matéria em si, nada é.
"Brinquedos que me permitam voar pelo caminhos da alma", afirma o meritório mestre. Alma ou corpo? Ficou a dúvida, pelo menos a minha. "Assim, todo professor, ao ensinar, teria que se perguntar: 'Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo'. Se não for, é melhor deixar de lado".
O erro do ilustre Rubem Alves é achar que ensinar (e aprender) é uma brincadeira de crianças. Não é. É o que de mais sério se pode fazer durante toda a vida. E refletir sobre essa dualidade ensino/aprendizado é tarefa para filósofos e o ensinar mesmo exige do mestre uma postura de filósofo. É preciso restabelecer a ética essencial e a hierárquica que deve existir entre mestres e discípulos - alunos e professores - mas essa ética tem que ser desenvolvida como uma crença geral, que começa em casa - os pais são os primeiros mestres - e acaba nas escolas. Infelizmente, o que vemos é a repetição, à exaustão, do bordão da musiquinha ordinária que diz em seu refrão: "Não confie em ninguém com mais de trinta anos". Assim não há hierarquia que resista e, muito menos, sistema educacional eficiente para a vida. Nossos tenros passarinhos terão muita, mas muita dificuldade, para sair do ninho em direção a uma existência mais alta. Infelizmente.
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3 comentários:
Obrigado pela partilha, Carmo. Interessantereflexão.
E de acordo contigo, em nada belísca o nosso sentimento sobre Ruben Alves. Não é assim que se faz caminho?
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Vou fazer um enlace para aqui.
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Carpe diem!
Olá Maria do Carmo (ou será Carmela?)
Li com muito interesse o (extensíssimo) artigo e duas coisas me saltam à vista:
1º - A tua exposição ter ZERO comentários. Creio que isto se deve, não ao conteúdo (já lá vamos) mas ao facto do artigo ser demasiado extenso. Sinceramente te digo que tive que fazer um certo esforço para o ler até ao fim. É cansativo, e, numa época em que predomina a «fast-food», as pessoas querem chegar rapidamente ao fim. Neste caso o José Nivaldo Cordeiro cometeu o erro imperdoável de não respeitar a regra do K.I.S.S. da Eleonor Roosevelt: «Keep It Simple, Stupid». Um dia te conto a história. Não hoje, para não cair no mesmo erro (já o cometi, como sabes; mas aprendi).
2º - Acho interessante que o articulista se tenha enredado nas teias de Nietzsche. E no entanto, penso que ele terá passado ao lado de uma obra que, para o efeito, terá uma importância e uma pertinência muito maior: a «Genealogia da Moral». Não vou aqui alongar-me sobre isto, o livro está disponível nas livrarias ou nas bibliotecas, deixo apenas a pista para quem quiser aprofundá-la. Mas entendo que a «moralidade» dos adolescentes nos dias de hoje (com influência directa no seu aproveitamento escolar) tem raízes na educação que as famílias (não) receberam. A grande maioria dos pais de hoje não tem «berço» e, em grande parte, entendo que isso tem a ver com a entrada maciça da Mulher no mercado do trabalho e com a pressão que os media exercem sobre as pessoas impreparadas. E nisso o articulista está com a razão. Em muitos pontos.
Tudo isto tem, posteriormente e como muito bem sabes, repercussões graves ao nível da Formação Profissional dos adultos. A juventude foi «ensinada» a exigir em vez de se esforçar, querem que tudo lhes seja dado sem esforço e, infelizmente, o valor que algo tem para nós é directamente proporcional ao esforço que fizemos para o obter.
E por aqui me fico. Espero que tenhas a paciência de me aturar, bem como aos meus comentários.
Um xi-coração do
Giorgio
Caríssimo Giorgio,
dou-te razão em tudo o que dizes, agradeço os conselhos e as sugestões, mas... "a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho" teria de ser assumida como uma mudança como as outras e teriam de ser encontradas as soluções adequadas. Julgo que concordarás comigo que às mulheres não foi imposto, de nascença, a obrigação de serem as guardiãs únicas da família e da educação dos filhos.
O que tem acontecido, na minha opinião sentida na pele, é que as mulheres entraram para mais um mercado de trabalho (porque ser dona de casa e mãe e esposa já e TRABALHO!)quando os homens não estavam lá para o fazrem. Provaram do fruto pribido e gostaram. E têm preferido sacrificar-se e acumular dois empregos (ser Mãe, Esposa - detesto esta palavra - governanta, gestora doméstica e ainda ter uma profissão) a entrar em lutas por uma verdadeira igualdade. Porque as lutas das feministas não ajudam nada as mulheres. Eu não quero ser Homem. Mas quero não ser obrigada, só por ser Mulher, a ter mais trabalho e obrigações. E é isso que se vê, felizmente a diminuir.
Mais outro "contudo", o problema agora é que, apesar de vivermos cada vez mais tempo, muitas mães e pais julgam que ele é pouco para "gozar a vida". E demitem-se de serem Pais e Mães. Raramente, se é que é possível, se podem meter dois proveitos no mesmo saco...
Olha, decidi neste preciso momento que vou vou postar esta resposta ao teu comentário. Técnica de marketing... Um abraço da Carmela
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