sexta-feira, 6 de junho de 2008
Bob Geldof, África, Fome, Pobreza, Guerra, Corrupção... Parte 4,25
Os "retornados" e eu, eu e os "retornados"
Para falar dos retornados de uma forma mais concreta, vou remeter-vos para uma experiência vivida, nos idos de 1976. Como professora, sempre privilegiei a relação com os alunos, procurando conhecê-los o melhor possível, cada um na sua circunstância pessoal. Ouvia-os muito, dentro e fora da sala, e como costumo dizer, tive que lhes dar, muitas vezes, o ombro e o lenço. Mas uma das coisas de que tenho mais orgulho é do facto de muitos dos meus rapazes e raparigas, homens e mulheres, acharem que eu sabia muito da vida e que tinha uma grande cultura geral. Atenção: não estou a dizer que tenho! Estou a dizer que eles pensavam que eu tinha, o que é diferente.
Ora um dia, nesse ano já longínquo, dava eu aulas na Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis (1976-77), estava no auge o regresso dos portugueses do ultramar, e os mais velhos talvez se lembrem, começava a fazer-se sentir um certo mal-estar. Os “portugueses de cá” que tinham recebido parentes em casa começavam a sofrer daquela síndroma de “os hóspedes, aos três dias, começam a cheirar mal”. Outros criticavam o facto de se terem instalado famílias inteiras, em números astronómicos para a altura, nos hotéis do país, dos menos aos mais “estrelados”. Por sua vez, muitos dos regressados (embirro com a palavra “retornados, até porque muitíssimos não tinham retornado a lado nenhum, porque nem sequer tinham nascido em Portugal), também não ajudavam muito a mudar o ambiente.
Muitos desses desalojados, nessa primeira fase de desânimo, só complicavam, com as suas lamentações contínuas sobre as desgraças que lhes tinham acontecido, pelas fortunas e haveres que teriam deixado em África, pelo elevado nível de vida que diziam ter perdido para sempre. Além disso, e de uma maneira geral, parecia que muitos, só por ter atravessado o Equador, se tinha tornado mais cultos e inteligentes e olhavam os “de cá” com uma certa sobranceria. Nós, coitados, éramos os “indígenas” daqui, que não tínhamos saído da cepa torta...
Neste momento da narração tenho a obrigação moral de dizer recebi muitos dos meus parentes (toda a minha família vivia em Angola) quando regressaram, mas que isso não tem nada a ver com o que aqui exprimo.
Depois de vos ter impacientado com este longo preâmbulo, vamos então à história que vos quero contar. Um dia, um aluno chamou a minha atenção pelo ar abatido, preocupado, distraído, que apresentava. Nitidamente, só estava na sala em ofício de corpo presente. A uma certa altura resolvi questioná-lo sobre a sua postura e respondeu-me de imediato, com uma pergunta, como se estivesse naquele preciso momento a pensar no caso: “Professora, por que é que nós, os Portugueses, somos tão pobres? E somos tão invejosos?”
Confesso que, num primeiro momento, fiquei pasmada, siderada. E pedi-lhe que esclarecesse melhor o seu pensamento. Não sabia bem o que ele queria dizer. E foi aí que o nosso rapaz, que neste momento deve ter os seus 47 a 48 anos, contou que a sua casa parecia um manicómio. Havia gente demais para o tamanho da habitação, os familiares que lá se tinham instalado passavam a vida a suspirar por comida especial, a mãe dele dizia que a irmã estava fina demais para o gosto dela, que nem a roupa lavava, etc., etc. Por sua vez, o pai reclamava duplamente: uma, pelos parentes da mulher não terem procurado ajuda junto das instituições competentes para poderem receber acolhimento e abrigo nos tais hotéis. Mas, logo a seguir, criticava essa mesma política, dizendo que os “retornados” estavam a ser alvo de um tratamento especial, pois os hotéis eram muito caros, “alguém se andava a arranjar com a situação” (sic) e, que lhe constasse, nunca os portugueses de cá, em situação de calamidade, tinham recebido esse tratamento VIP.
O pobre do rapaz andava baralhado e confuso com as discussões constantes e particularmente pela alteração de sentimentos entre o momento da chegada dos parentes e o presente. Bem, pareceu-me um caso delicado e nem via bem onde é que ele via a relação da situação com a questão de nós, portugueses, sermos pobres e invejosos. Também foi rápido a explicar: a avó dizia que “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão” e os tios continuavam a lamentar a perda da grande fortuna que diziam ter deixado para trás e a mãe, quando estavam a sós, dizia que era tudo uma grande aldrabice e que a irmã nunca se tinha lembrado dela quando era rica... Decidi contar-lhes a História e histórias de Portugal.
Já vão ver porquê. Num dos próximos capítulos… Para justificar como o retorno dos “colonos” foi mais uma das nossas oportunidades perdidas.
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3 comentários:
Querida Maria do Carmo:
É muito bem vinda em minha casa. Da mesma forma que diz que a cativei, há muito que sinto que "é minha". O amor por África é algo que nunca nos deixa mesmo que a tenha deixado em nova. As questões que põe nos seus posts são importantes. Na nossa tribo "o essencial vê-se com o coração."
Admiro-a imenso.
Espero que o médico tenha só boas notícias para si e que corra tudo pelo melhor.
Um grande beijo tribal
Pois eu recordo sempre,
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Andava no 2º ano do ciclo, na Escola Preparatória Ramalho Ortigão no Porto, estávamos em pleno 2º período (1976).
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A meio de uma aula, nos pavilhões pré-fabricados, a meio da manhã, alguém bate à porta, uma funcionária abre a porta e troca umas palavras com a professora, depois sai, e logo a seguir entra um rapaz, muito mais alto do que nós todos. A professora começa a falar com ele, não ouvíamos nada... de repente, o gigante começa a chorar como um bébé.
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Que impressão que me meteu, esse rapaz era um dos regressados de que falas.
Continuo a acompanhar com o máximo interesse.
Aguardo o resto.
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